As Letras

1. Sinas Gerais
(Siuil a Run)

Homens vão, e permanece o chão

Das montanhas e serras
de onde eu vim
Saudades brotam
feito alecrim
Cascatas levam
meu choro enfim

Sinas Sinas dessas gerais
Cavando as minas,
olhando nos vitrais
Choram as mães e
choram os pais

A chuva deposita
os ribeirões
Cruzando as pedras
feito procissões
Transbordam como
conjurações

Vendi a roca
e meu carretel
E as roupas com o
mesmo tom pastel
No aço do sabre
fiz meu anel

2. Seus Poemas
(How Can I Keep From Singing?)

A vida vai na canção sem fim
Além dessas lamúrias
Ouço os hinos celestiais
Às criações tão puras

Na correria e confusão
Eu ouço o seu tema
Na minha alma e coração
Recito seu poema

Na tempestade que bravejou
Busquei minha verdade
Na escuridão em que estou
Canto a claridade

Com os meus pés firmes no chão
Serei muito serena
Em gratidão ao meu senhor
Recito seu poema

Se o terror se propagar
A dor que envenena
Me salvarei pela canção
Recito seu poema

Mas se a fé em mim faltar
E a alma for pequena
Insistirei em te procurar
Citando seu poema

3. A Menina de Lá
(The Pretty Maid)

Um verão de manhãs
encantadas
As aves com seu gorjear
E eu caminhava em prantos
Quando ouvi a menina de lá

Sua voz, cativante veludo
E eu sem poder mais andar
Meu peito de chumbo tão
mudo
Suspirou à menina de lá

Eu cheguei sem fazer
cerimônia
“Quem é essa moça a cantar?”
“A mais bela desta colônia!”
“Não sou não”, disse ela de lá

“Eu não sou preciosa nem
rara”
“Riquezas não pude guardar
“Sua vista não é muito clara”
“Sou a pobre menina de lá”

Nem nas Índias vi tanta
beleza
Traslúcida jóia a brilhar
“No meu funeral, com certeza
Sua rosa é que vai perfumar”

Nem a lâmpada mágica pode
Com seus três desejos me dar
Um refresco pro peito que
erode
Por querer a menina de lá

4. À Lira
(Coinleach Ghlas An Fhómair)
* letra de Cláudio Manuel da Costa – enxertos de À Lira Desprezo e À Lira Palinódia.

Que busco, infausta lira,
Que busco no teu canto,
Se ao mal, que cresce tanto,
Alívio me não dás?

Se aquela ingrata calma
Foi só tormenta escura,
Na minha desventura
Também naufragarás.

Vem, adorada Lira,
Inspira-me o teu canto:
Só tu a impulso tanto
Todo o prazer me dás.

No gosto, em que me encantas,
Suavíssimo instrumento,
Em ti só busco o alento;
Que eterno me serás.

De minha ânsia ardente
Perdeste o caro império:
Que já noutro hemisfério
Me vejo respirar.

Qualquer penoso excesso,
Que atormentasse esta alma,
A teu obséquio em calma
Eu pude serenar.

5. O Jardim
(Down By The Sally Gardens)

Eu nasci vislumbrando um jardim
de colossal radiância
Mas cresci e um quebranto deu fim
a inocência da infância
Pude ver que há um lado sórdido
nas promessas mudas do amor
A pureza se foi tão depressa
quanto a folha que o vento levou

A dureza crescia em mim e
nessa pedra talhei minha dor
Até que uma rosa menina pelo vidro da alma entrou
Em gotas de serenidade
destilou panoramas em mim
E de vales assim cavernosos
fui tornando-me como jardim

Vive dentro de mim um jardim de
amores e recordações
A vida brotando em jasmim e
perfumando as minhas ações
Já fui um deserto árido
sem acácia e sem alecrim
Mas bastou que a rosa chegasse
e da flor me tornei um jardim

6. A Sereia e o Mar
(An Mhaighdean Mhara)

Você já se perdeu
em meio as rugas do seu eu
Esfriou seu coração
na extrema unção
Sorriu somente
ao lembrar de quem amou
Foi aquela pescadora
que lhe apresentou o mar

Chorou o mesmo azul
do oceano colossal
Onde ela mergulhou,
abraçou o abissal
Tal qual sereia
retornando ao seu lar
Foi aquela pescadora
que lhe apresentou o mar

Cansou de caminhar
pelas estradas do viver
Não há mais o que pisar,
nem plantar, nem crescer
Só há futuro
se a nau lhe retornar
Com aquela pescadora
que lhe apresentou o mar

7. Castelos de Mármore
(Marble Halls)

Sonhei com castelos de mármore
Em nuvens de algodão
Morava em florestas de sândalos
Nas margens de um ribeirão

Sonhei com açudes auríferos
E ouro em meu brasão
Sereias de mundos aquáticos
Cantavam sua canção

E meus sonhos enormes
Não tinham chão
E meus sonhos tão grandes
Não tinham chão

Sonhei com crepúsculos mágicos
Portais de outra dimensão
Meu choro sumia no círculo
Da vareta de condão

Meu pai perguntou onde vou parar
Sonhando sem ter razão
Mas como largar meu refúgio
De um mundo sem coração

E meus sonhos enormes
Não tinham chão
E meus sonhos tão grandes
Não tinham chão

8. Colinas de Del Rei
(The Green Fields of Gaoth Dobhair)

Nos campos verdejantes das montanhas de del rei
Busquei respostas pras questões que carrego aqui em mim
Da vida, morte, e as relações entre início, meio e fim
Eu vi a carne e os ossos nas colinas de del rei

O vento não levou os sonhos lindos que roubei
Das moças e amigos meus, de tantos que amei
E se eu fosse como Deus saberia onde errei
Reguei com o meu choro as colinas de del rei

Fantasmas dançam sobre os casebres de del rei
Já foram vivos como nós, elétricos mortais
E quando nos sentirmos sós, lembremos desses tais
Que adornam as lembranças das colinas de del rei

Havia um grande abismo entre eu e o que bem sei
Ser só ansiedade por provar de algo mais
Navego na saudade sem querer voltar ao cais
Eu vi tantos futuros nas colinas de del rei

9. Embarcanações
(Mhorag’s Na Horo Gheallaidh)

Uma mão de além mar
Pé de pária pisa na praia
em que
Num barco eu cheguei
Filho de escravos e reis
Tal qual vossa mercê

Ira erma ergue o erro
Ir na orla terra
por onde
Num barco eu cheguei
Filho de escravos e reis
Tal qual vossa mercê

Navegando vago a nado
Na luneta a lua é perneta pois
Num barco eu cheguei
Filho de escravos e reis
Tal qual vossa mercê

Caravelas, caras-pálidas
Desvelam velhas palavras pois
Num barco eu cheguei
Filho de escravos e reis
Tal qual vossa mercê

10. Três Corvos
(Three Ravens)

Haviam três corvos a espreitar
De lá, pra cá, hey, ra ra rá!
Negros como as noites de Shangrilá
Um deles disse, a sussurrar:
“Mas o que temos para lanchar”?
Há de ser, isto apenas e nada mais

Um homem caído a definhar
De lá, pra cá, hey, ra ra rá!
Negro como os devotos de Oxalá
Ali, deitado, sem respirar
Os corvos viam seu jantar
Há de ser, isto apenas e nada mais

Mas eis que chega ela a andar
De lá, pra cá, hey, ra ra rá!
Branca como se descesse de Asgard
Tocou o homem, sem vacilar
Que levantou-se bem de estar
Há de ser, isto apenas e nada mais

Um índio quis se aproximar
De lá, pra cá, hey, ra ra rá!
Era um descendente Xakriabá
Juntou-se ao homem e a mulher
E se olharam, todos de pé
Há de ser, isto apenas e nada mais

Um estrangeiro, a mirar
De lá, pra cá, hey, ra ra rá!
Do alto, seu escarro é nuclear
Nos galhos deste pau-brasil
Os corvos zombam do fuzil
Há de ser, isto apenas e nada mais

11. Me Conte a História
(Éirigh Suas A Stóirín)

Me conte a história
De quando você casou
No peito o aperto
Ao pedir sua mão
Famílias se uniram
Tinha novos irmãos
E a mais linda noiva
Da imensa nação

Me conte a história
De quando ela se foi
Deixou seus vestidos
Dois sapatos e um boi
Bem antes do tempo
O bom Deus lhe chamou
E o pobre marido
Ela abandonou

Me conte a história
De como você ficou
Fantasma da sorte
Que o caminho errou
Sonhando com filhos
Que o destino roubou
A saudade futura
Do que nunca chegou

Me conte a história
Da sua redenção
Quando novamente
Reencontrou compaixão
Entendeu que as cinzas
Sempre voltam pro chão
Alimentando as sementes
No vindouro verão

Faixas bônus:

12. Alma Jardim

Vai tão lilás
Violeta ou azul
Violenta não mais
Vi a paz nesta núpcia

Flor lá do sul
Fina fúcsia, ardor
Frésia calma de amor
Fala em mim

Já é primavera, era jasmin
No primeiro dia de janeiro
Foi alecrim,
na palma deste jasmineiro
Alma de verde jardim

Manto floral
Malha tão tropical
Um outono marçal
Flor astral na cabeça

Canto que fiz
Um canteiro risquei
Meio raso, eu sei
Vera cruz

Já é primavera, era jasmin
No primeiro dia de janeiro
Foi alecrim,
na palma deste jasmineiro
Alma de verde jardim

13. Piquenique

Quem fez o pano tão fino
Que de tão leve voou?
Foi na garupa do tempo
E derrapou na manhã.

Vestindo nosso momento
De felicidade pagã

Cor de maçã, um delírio febril
Margaridas em pleno abril
Tudo tão bom de querer
No meio de tudo, você

Esse prosaico tecido
Foi costurado no céu
E sobre pequenos furos
Surgem estrelas no véu.

Celestial piquenique
Talvez justifique saber

Quem estampou a figura do amor
Neste pano azul de cetim?
Algo em mim quis dizer
Que tinha a ver com você.

*

Arranjos, versões e composições de Rafael Senra
exceto faixa 4: poemas de Claudio Manuel da Costa (À Lira Palinódia e À Lira Desprezo).

copyright © 2017 Rafael Senra.