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Porque encontramos mais crianças criativas que adultos criativos?

Tudo se resume a um instinto universal – o medo. Crianças não desenvolveram ainda um senso de autopreservação como os adultos. Assim, da mesma forma que elas não temem enfiar o dedo em uma tomada, também não tem pudores de expor suas ideias. Elas não se importam se alguém vai considerá-las ridículas por dizer coisa alguma.

Não é possível ser criativo se você teme o sentimento de ser/parecer ridículo. Se você considera que existe arte perfeita alcançada sem dor e sem ridículo, devo te dizer que há um desvio bem perigoso na sua noção de realidade.

Para que Bach compusesse as músicas que hoje em dia ouvimos como peças perfeitas, ele teve que ser ridículo (mesmo que em seu quarto, em seu universo particular, sem ninguém olhando). Imagino o compositor envolvido na angústia, atormentado pela partitura incompleta e ainda inconsistente, longe de funcionar e de arrebatar corações, mas, apesar de tudo, insistindo em fazer malabares com as ideias.

E as crianças, estas nem mesmo lutam contra o ridículo, assim como fazem os artistas adultos: elas simplesmente o ignoram. Se você ri de uma criança porque ela acredita em papai noel ou em duendes, ela vai rir junto, além de praguejar que você, seu adulto ingrato, não vai ganhar presentes no próximo dezembro!

A questão é que esses pequenos risonhos estão no paraíso, e nós adultos, não mais (pelo menos na maior parte do tempo). Talvez por isso boa parte de nós zomba das fantasias infantis, e não sossegamos enquanto não convencermos as crianças de que o sentimento do ridículo é o maior obstáculo a ser evitado nessa vida. Não me fale de hormônios – é a nossa crueldade séria e austera em relação às crianças que as obriga a crescer.

E é tão curioso que esses adultos tão maduros e vividos possam fazer as coisas mais ridículas, caso haja dinheiro envolvido! Assim como as crianças acreditam em duendes, nós acreditamos em um pedaço de papel – com o qual nos prometeram que poderemos comprar casas na praia, iates, carros possantes; com o qual poderemos comprar a honra e o caráter dos outros.

E damos risada dos que criam, porque eles perdem o bom senso, dizem coisas impróprias, agem como loucos, zombam da moralidade! Veja o caderno de esboços de um escritor: é o caos! Páginas que parecem ser resultado de um surto! Se esquecem de que nem mesmo o nosso Deus cristão escapou do caos, essa força ridícula e insana que é matéria-prima de tudo que se cria. No início, “a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Genesis 1.1-5). Tudo era uma bagunça. Só depois da confusão de gases e células, é que foi dito: “haja luz; e houve luz” (Genesis 1.1-5).

A atividade criativa é a força que nos suspende, para além do instinto de sobrevivência e do instinto de reprodução. Por isso ela é considerada inútil, e também é considerada ridícula. A atividade criativa não era como a pedra ou o fogo para o homem das cavernas. E tampouco ajudava na reprodução da espécie. Contudo, foi graças a ela que deixamos de ser homens das cavernas.