Resenha – Anterior (2013), de Pablo Castro.

Para mim, o disco Anterior, de Pablo Castro, foi o melhor disco de 2013. E, com algum atraso, finalmente publico aqui uma resenha sobre ele.

 

Apesar da minha opinião, me parece improvável que listas de melhores do ano tenham incluído o disco de Castro, por diversos motivos. Esquemas viciados por panelinhas e nichos pré-definidos no mercado quase sempre justificam os rankings e os prêmios na seara musical já há algum tempo. Só digo que se as listas não mencionam esse disco, pior para elas. Enfim, nunca fui um grande fã de listas. Talvez porque o adjetivo “pessoal” do meu gosto é bem acentuado (se me pedirem uma lista das grandes bandas de todos os tempos, incluirei pérolas como Dream Academy ou Wishing Tree). Mas costumo ter bem definidos os motivos pelos quais gosto de determinados artistas.

 

O disco de Pablo traz influências que reverberam em alguns grandes pilares da minha formação musical. No seu som (que Severo Sarduy definiu como “neobarroco”) detecto doses generosas de Beatles e Clube da Esquina, além de toda uma reverência nada óbvia à MPB, passando pela tropicália, ou por cantautores sofisticados e irrotuláveis como João Bosco, Paulinho da Viola, Guinga, etc.

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Gravando Anterior no estúdio.

 

O elo com o Clube da Esquina, contudo, parece emergir com mais intensidade nessa mistura. Seja pelo barroquismo, pela valorização do arranjo como peça de composição, enfim, por elementos que descreverei com mais acuidade abaixo. E, principalmente, por razões geográficas, já que Pablo também vive e canta a partir das montanhas Gerais e das esquinas de Belo Horizonte. Por outro lado, seria imprudente dizer que Pablo é um arquétipo integral da atualização do conjunto de referências que envolve a estética “clubista”; até porque o próprio artista parece cauteloso ao evitar levantar tais bandeiras.

 

De todo modo, o legado do Clube da Esquina ajuda a identificar uma série de procedimentos que a música de Castro apresenta: a preocupação com o formato da canção popular (média de 4min, estrofes e refrões, trechos cantaroláveis, temas cotidianos, etc.); a abertura para influências estrangeiras (seja em temática, timbragem, conceitos, etc.); arranjos que, por vezes, funcionam quase que como composições dentro das composições; letras com um foco introspectivo e carregadas de simbolismos e metáforas; além de uma postura despojada do artista em relação à performance midiática, sem privilegiar figurinos, performances, e mantendo a música como peça privilegiada no spot.

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Em estúdio, gravando Anterior.

 

Além de compor seu repertório, Pablo está no centro das intricadas interpretações, costurando a teia sonora com seu violão de nylon e sua voz de timbre marcante. E se as influências do artista são mais familiares às décadas de 60 e 70, vale mencionar que sua banda de apoio no disco (composta por mais de 25 músicos, como Thiakov, Maurício Ribeiro, Bruno Santos e outros) tem um acento pop-rock com um vocabulário mais contemporâneo, e as levadas e timbres as vezes remetem a nomes como Radiohead. Por cima de tudo, algumas músicas contam com naipes de metais (como Moby Dick), e outras com cordas (como Anterior).

 

Essa massa sonora de músicos e arranjos é o que, para mim, mais aproxima Anterior do que poderia se chamar de neobarroco. Essa definição foi problematizada na brilhante resenha do Tulio Villaça, que também esboçou uma discussão sobre até quando o Clube da Esquina foi, de fato, barroco. Em uma entrevista que Tulio faz com Pablo, nesse mesmo link, eles discutem a influência do rock progressivo, estilo que, em alguns momentos, apresenta nuances que eu também vislumbro como barrocas (desde sutilezas, até os cravos virtuosísticos de Rick Wakeman, por exemplo). No caso do Pablo, vejo a relação entre barroco, Clube da Esquina e progressivo justamente na estrutura de arranjos, que não soam gratuitos em nenhum momento. Diferente dos improvisos jazzísticos ou de boa parte dos arranjos da música popular que funcionam como uma “cama” para as canções, os arranjos de Anterior tornam-se também canções, com fraseados próprios e bem arquitetados.

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O protagonismo dos arranjos, porém, não implica em dependência: através de diversos vídeos no you tube, Pablo Castro interpreta diversas canções apenas com voz e violão, deixando claro que as composições funcionam por si mesmas. Ao ter contato com o “esqueleto” dos seus temas, deixei de vê-los como neobarrocos, à despeito da sofisticação que ainda ostentam.

Além do mais, sua obra não se propõe como purista. Pablo lança seu olhar para diversos estilos, bem ao modo do antropofagismo tropicalista, distanciando de canções “redondas”, como standarts a la Cole Porter ou Gershwin. Suas composições, apesar de emularem o léxico de estilos variados, como o baião ou o samba, se valem sobretudo de amálgamas bem “beatlenianos”, e o fato das misturas soarem afinadas e integradas é prova da habilidade do autor. A marca composicional de Castro mostra sua força principalmente por manter uma unidade, apesar de tantos estilos, músicos e parceiros de criação. Sem contar que foi um disco gravado ao longo de vários anos. Se algo coeso foi capaz de resultar em meio a tudo isso, deve-se à qualidade do repertório e das interpretações.

 

O disco abre com Anterior, tema forte e original, desses que dão nó na cabeça pelos caminhos imprevisíveis percorridos pela letra, melodia, arranjos; e que consegue soar acessível ainda assim. Caminho Aberto é outra canção toda de Pablo, com sonoridade bem atual, enquanto Baião Nosso de Cada Dia surge com um tom acentuado de brasilidade. Essa é a primeira de cinco parcerias de Pablo com Luiz Henrique Garcia, parceiro mais presente no repertório do CD.

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Luiz Henrique Garcia

 

Se Anterior fosse um disco dos Beatles, as letras do Luiz Henrique poderiam ser consideradas como a porção “mcCartneyana” do trabalho. Seu olhar tem um enfoque mais objetivo, com ares de cronista, que remete a canções do ex-beatle como Penny Lane, London Town, e tantas outras. Ele versa sobre personagens (Moby Dick), histórias cotidianas (A Feira) ou imagens exóticas (Ponto Oriental), trazendo um variado e rico leque de referências. O lado mais “lennoniano” talvez fique pelas letras do próprio Pablo, partindo quase sempre de um ponto de vista individual e subjetivo, como na faixa-título, Interlúdio, e outras.

 

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Da esquerda para a direita: Makely, Kristoff e Pablo.

Kristoff Silva e Makely Ka, parceiros de Pablo no belo disco A Outra Cidade, também dão seu toque em duas faixas cada um: Kristoff na soturna e imprevisível O Grande Verão, e Makely no descontraído e épico Samba do Apocalipse. Os temas seguintes, O Sétimo Selo e O Fim do Mundo, revelam sua grandeza através de nuances mais tênues, até mesmo pelo menor número de músicos envolvidos e pela interpretação mais comedida. Elas formam um interessante contraste com a bombástica A Banda dos Descontentes, que fecha o trabalho. O tema (cujo nome remete à banda “anterior” de Pablo) apresenta um ótimo trabalho da banda e dos metais, e nos faz querer cantar a plenos pulmões quando chega o potente e intenso refrão.

 

É um disco inspirado, bem interpretado, que olha para a MPB de ontem e de hoje com reverência e respeito. Acima de tudo, é um disco honesto. Fosse em uma época onde a música brasileira da melhor qualidade era embalada e vendida da forma merecida, Anterior figuraria, sim, nas listas mais célebres. Porém, são tempos onde a mídia se rende a superficialidades, à figuras que não oferecem nada além de corpos perfeitos e polêmicas sazonais. Os bons trabalhos, porém, estão acima de modismos, e não se regem pelos mesmos parâmetros. Convido os leitores a pensar num futuro, em um momento posterior: Anterior ainda estará lá.

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