Resenha do disco Ventos do Sul, de Ismael Tiso

A meu ver, diferente de diversas correntes da MPB que se renovam e são revisitadas com frequência, o legado do Clube da Esquina tem sido “ativado” com uma frequência cada vez menor ao longo do tempo. Digo isso mais como palpite do que como amostragem séria, tomando a liberdade de citar alguns exemplos a esmo (e correndo o risco de deixar muita coisa de lado): após o primeiro passo no fim dos anos 60 e início dos 70 (elaborada na obra de seus fundadores; Milton, Beto, Lô, etc.); houve uma segunda geração no fim dos 70 (Flávio Venturini, Tavinho Moura, e mesmo gente como Zé Renato, Claudio Nucci, etc.); até que, dos anos 90 em diante, o Clube ressurgiria mesmo só em iniciativas isoladas. Gente como Luiz Guedes e Thomas Roth nos anos 80; Flávio Henrique, Chico Amaral e Marina Machado nos 90; e Pablo Castro ou Liz Valente depois dos 2000. As razões disso acontecer? Ficam para outro texto (mas há palpites: a dificuldade harmônica, melódica e instrumental; o incentivo ao espírito coletivo incapaz de tocar o individualismo das novas gerações… e por aí vai).

Foi em 2010 que Milton Nascimento – o ser que deu cara, coração e alma ao Clube da Esquina – iria revelar, através de seu disco E a Gente Sonhando, que havia de fato uma legião de jovens dispostos a novamente garimpar a tradição musical mineira. Um desses novos talentos é o três-pontano Ismael Tiso, que teve a música “Do Samba, do Jazz, do Menino e do Bueiro” gravada por Bituca nesse disco supracitado. Atualmente tocando no grupo Compasso Lunnar, eis que Ismael lança em 2016 seu primeiro trabalho solo, Ventos do Sul.

 

Banda Compasso Lunnar
Banda Compasso Lunnar

 

Para situar rapidamente a estilística desse CD, seria possível dizer que é como se Tavinho Moura e o Beto Guedes dos anos 70 realizassem algo em parceria (apesar de que há pitadas de Toninho Horta e Lô Borges em diversos momentos. Aliás, essas “pitadas” são algo presente em quase todos os discos antigos do Clube, onde a grande irmandade de músicos se revezava nos seus trabalhos em geral). Por se tratar de um trabalho de um instrumentista das seis cordas, os violões e guitarras tem destaque notável. Vale mencionar também outros tantos músicos como Clayton Prosperi, Lisandro Massa ou Dedê Bonitto, que garantem um luxuoso e competente apoio de banda.

No aspecto vocal, Ismael se apropria do que seria um entre dois ramos de cantores “clubistas”: o dos instrumentistas que oportunizam a voz que dispõem. Enquanto há alguns intérpretes notáveis circulando no movimento – Milton como o maior, e, orbitando ao redor, outros como Tadeu Franco ou Tunai – , há as vozes de Lô Borges, Tavinho Moura ou mesmo Toninho Horta, todos músicos e harmonizadores que desenvolveram também uma assinatura no aspecto vocal. Este é apenas um dos desdobramentos “joão-gilbertianos” no Clube da Esquina; a saber, a legitimação de formas de cantar menos dependentes da impostação dos intérpretes privilegiados, como os da era do rádio. Nesses casos, tratam-se de cantos limpos, com dicção clara e sem pudor de recorrer a recursos como os falsetes. É nesse ramo que Ismael se integra, com competência.

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Nas composições, Ismael não só apresenta letristas como João Marcos Veiga e Miller Sol, mas ele próprio se encarrega de escrever também alguns versos. E o aspecto lírico se revela tão afinado ao ethos clubista quanto o aspecto melódico: há os elementos da natureza, amizades, oração, “cor de vento”; só para ficar em algumas imagens. Tratam-se de letras inspiradas, originais, dispostas a atualizar na contemporaneidade a ótica subjetiva e subversiva exercitada por autores como Márcio Borges e Murilo Antunes.

“Revoada” abre o disco com um tema quase que inteiramente tocado por Ismael, com uma levada mais regional puxada pela percussão e pelas violas. A Primeira” tem uma das mais marcantes melodias desse repertório, certamente polinizada pela “Horta” de Toninho. A já citada “Do Samba, do Jazz, do Menino e do Bueiro” faz jus aos estilos citados no seu título, e, nos arranjos desse disco, tanto a levada quanto o timbre remetem a alguns bons trabalhos de samba jazz, como de Eumir Deodato ou Azymuth, por exemplo. “Reino de Pedras” não faria feio se figurasse em discos como A Via Láctea, de Lô Borges. “A Nossa Raiz” oscila belamente entre o jazz e a MPB. “Outono” é curta, truncada e misteriosa. E, por fim, “Ventos do Sul” se revela muito adequada para fechar o trabalho (e também para batizá-lo), por se tratar de um ótimo cartão-postal que reúne as grandes qualidades do disco. É uma composição inspirada, delicada e cativante.

Não é apenas a maturidade das canções e interpretações que faz de Ventos do Sul um disco recomendável, tampouco seu elo de descendência legitima do Clube da Esquina; mas sim uma mistura entre esses aspectos citados e a originalidade de Ismael Tiso. Em seu trabalho de estreia, fica claro que o músico tres-pontano tem uma contribuição válida e relevante a oferecer para a tradição na qual ele se insere. Suas músicas são capazes de revigorar todos aqueles ouvintes e fãs que esperam por continuadores talentosos para a música mineira e brasileira.

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