Por que o Pink Floyd é a maior banda de rock progressivo da história?

A explicação vai além da música

É muito estranho parar pra pensar no fato de que o Pink Floyd é uma banda famosa. Acho que a maioria dos ouvintes de música já se acostumou com isso, mas pense como tudo em torno do grupo parece anticomercial. As capas de disco famosas geralmente têm como foco sorridentes membros de banda. No caso do Floyd, entretanto, você encontrará figuras tão díspares quanto um porco voando em volta de uma fábrica, um homem pegando fogo, um prisma misterioso, ou até uma vaca no pasto.

No caso das bandas famosas, geralmente sabemos de cor o nome dos membros. Mas, até algumas décadas atrás, a grande maioria das pessoas apenas sabia que Pink Floyd era a “banda do prisma”. Antes da internet popularizar a treta “Waters x Gilmour”, boa parte das pessoas desconhecia o nome e o visual dos integrantes. Nos anos 70, pensava-se que Pink Floyd era uma pessoa (falarei disso logo mais).

E o que dizer das canções? Nada de temas fáceis de amor aqui. Em vez disso, você encontrará letras que parecem uma viagem de ácido (pense em “Set the Controls for the Heart of the Sun”, ou “Astronomy Domine”), sobre a loucura (praticamente todo o disco The Dark Side of the Moon), sobre o café da manhã psicodélico de Alan (foi uma piada, essa é instrumental). E duvido que você saiba de cor esse título que é quase uma letra inteira de música: “Several Species of Small Furry Animals Gathered Together in a Cave and Grooving with a Pict”.

Falando sério, quantas bandas com músicas de dez ou vinte minutos (e as vezes com longas introduções de teclado ocupando quase ¼ da canção) você conhece? (Não vale responder se você for fã de rock progressivo).

Só que, apesar de tantas estranhezas e excentricidades, o Pink Floyd ocupa o nono lugar na lista dos dez artistas mais vendidos da história do rock.

Existem várias explicações para como um grupo tão pitoresco chegou a um glorioso patamar de popularidade e aclamação pública. De uns anos para cá, comecei a costurar uma interpretação que me parece ajudar a explicar todo o magnetismo exercido pelo Pink Floyd: eles são alguns dos melhores contadores de histórias dentro do rock.

Várias de suas músicas são totalmente cinematográficas (e não a toa, diversos discos da banda se tornaram trilhas de diretores como Michelangelo Antonioni, Alan Parker ou Barbet Schroeder). Essa percepção do potencial narrativo dentro das músicas do Floyd me parece ser a explicação mais abrangente para explicar seu estranho carisma. Contudo, não posso me gabar de ter sido eu a perceber o fato. Pincelei esse mote de uma declaração do guitarrista Alex Lifeson e do baixista Geddy Lee, ambos ex-integrantes do Rush, em uma entrevista para a revista Guitar World datada de junho de 2009 (a entrevista é atribuída aos dois, e não encontrei o autor isolado dessa frase):

“O Pink Floyd tem arranjos incríveis, as músicas deles são ricas e complexas, mas não particularmente complicadas. Eles podem demorar o quanto quiserem para contar a você uma história, mas ela é sempre interessante”.

Desde o início, a banda demonstrou ser um celeiro fértil de talentos combinados para construir musicalmente boas histórias. Quando o Floyd surgiu, em 1965, o “maestro” dessas obras era o jovem pintor e visionário Syd Barrett, um sujeito carismático e fora da caixinha que era tido pelos outros integrantes do grupo como uma espécie de guru. O primeiro single de sucesso do Pink Floyd, “Arnold Layne”, já tem como título o nome de um personagem lunático conhecido pelo peculiar hábito de roubar calcinhas na sua pacata vizinhança.

Jimmy Page, do Led Zeppelin, comentou em 2017 sobre a enorme influência de Barrett:

“Ele era absolutamente inacreditável em termos do que estava fazendo; deu um passo para fora da caixinha e canalizou todas aquelas coisas incríveis. A versão deles da música psicodélica era muito, muito legal. [Naquela época] tinha coisas rotuladas como psicodelia que, não quero citar nomes, mas que eram horríveis! Mas o que eles [Syd Barrett e o Pink Floyd] estavam fazendo era seriamente experimental, e marcou muito.”

Barrett foi quem deu o norte para o grupo. E foi quem lhes deu seu estranho nome também. Toda a ideia de usar luzes e efeitos especiais ao vivo, a aura psicodélica, o foco em longos instrumentais, a afirmação da esquisitice, tudo isso veio dele. É pena que esse artista brilhante tenha sido tragado pela energia caótica que ele mesmo conjurou.

O fato é que, com sua saída forçada em 1968 (por razões de deterioração da saúde mental devido ao consumo de substâncias lisérgicas), entra David Gilmour em seu lugar, e o vazio de Syd deixou o quarteto com um abacaxi nas mãos: “Which One’s Pink?”.

(Explicando a frase: em 1973, o Pink Floyd lançou o best-seller The Dark Side of the Moon, e reza a lenda que um executivo de gravadora se aproximou do quarteto e perguntou “mas qual de vocês é o Pink?”, achando que o nome da banda era, na verdade, o nome de um dos integrantes. O egocêntrico Waters nunca se esqueceria do episódio. Ele usou a frase do executivo como parte da letra de “Have a Cigar” (presente no disco posterior a Dark Side, Wish You Were Here, de 1975), e também a inseriu no filme The Wall, quando um dos executivos de gravadora pergunta “which one’s Pink”?).

Voltando aos anos de formação da banda (entre 1968 e 1973), podemos dizer que, nessa época, nenhum deles (e todos eles) foram Pink. Nesse período, eles uniram forças para descobrir juntos o que tinham a oferecer do ponto de vista artístico. Em vez de continuar repetindo o modelo de pop psicodélico sessentista que deu certo com Syd Barrett, o Pink Floyd seguiu se arriscando nas propostas mais anticomerciais que se possa imaginar (ouça o disco Ummagumma para entender do que estou falando).

Até que, nas sessões de gravação do disco Meddle, de 1971, eles encontraram enfim a dinâmica que lhes levaria ao Olimpo e garantiria um lugar na história do rock. E não foi com nenhuma música de 3 ou 4 minutos cheia de riffs ganchudos ou um refrão cativante. E sim com “Echoes”, um tema de 23 minutos cheio de trechos arrastados e experimentalismos de guitarra (pense naqueles exatos 4 minutos e 45 segundos de ruídos atonais e sons ambiente que divide as duas partes da longa suíte). Ali a banda descobriu que seu ouro não estava no virtuosismo, nem na estranheza pura e simples, ou mesmo em fazer as pessoas rebolarem. Eles começaram a contar histórias com suas músicas.

Uma das qualidades dos bons narradores é poderem oferecer um olhar único, sob um ponto de vista que ninguém tinha pensado. Não é o que se conta, mas como se conta. De maneira consciente ou não, foi o que os integrantes do Pink Floyd entenderam como fazer. Além do mais, somado ao apelo musical, havia também a tradução desse universo lúdico nas capas dos álbuns. Mérito de Storm Thorgerson e Aubrey Powell, do estúdio Hypgnosis, que ofereceram um contraponto de brilhantismo e excentricidade em tantas capas clássicas.

Outra qualidade notada na obra do Pink Floyd envolve o uso de contrastes – uma regra que funciona para o bom design e também para as boas histórias. Na verdade, a própria banda era formada de pessoas com temperamentos e visões de mundo tremendamente contrastantes, como um verdadeiro eclipse (perdoem o trocadilho).

De um lado, Roger Waters querendo explorar facetas mais profundas da experiência humana, ver o lado mais sombrio das coisas, o lado escuro da lua. Já no espectro sonoro, você tem como contraponto as baterias suaves e econômicas de Nick Mason e os teclados espaciais de Rick Wright. Costurando tudo isso, há David Gilmour, que, com sua genialidade nos vocais e guitarras, consegue consolidar a assinatura sonora definitiva da banda. Gilmour, por sinal, é um mestre na dinâmica e no domínio do tempo ao tocar seus solos, que parecem uma verdadeira história contada melodicamente.

Com a saída de Roger Waters, a banda se transformou em uma cadeira de três pernas: conseguia até parar em pé, mas faltando um elemento importante da alquimia que ganhou o mundo. A parte lírica se diluiu, perdeu a direção. Mas o repertório construído por eles em sua fase clássica continua sendo alvo de interesse crescente.

Não deixa de ser curioso pensar sobre a relevância do legado da banda diante dessa chamada “geração do skip”, com pessoas incapazes de ouvir as músicas até o fim. Atualmente, vivemos uma era em que produtores e músicos aderiram à tendência até de cortar a introdução das canções, no desespero de criar qualquer gancho bombástico capaz de reter a atenção de ouvintes cada vez mais desatentos e inconstantes.

E aí você procura no Spotify os dados da canção “Shine on you Crazy Diamond” (do disco Wish you Were Here, de 1975), e percebe que, apesar de sua longa introdução em fade in de, com minutos e minutos de um som de teclado sutil que promete ser um teste de paciência para qualquer jovem oriundo da Geração Z, a faixa ostenta impressionantes 223 milhões de views.

Tudo isso mostra que, apesar de todas as tendências, o que de fato prende a atenção das pessoas são as boas histórias. A publicidade sabe disso faz tempo, e já transformou essa necessidade humana universal por narrativas em um conceito que tornou-se até infame ao longo do tempo: storytelling. Seja para empurrar um político duvidoso ou uma nova marca de macarrão sem glúten, nada vende melhor do que uma história cativante.

E, dentro do mundo da música, o Pink Floyd tem uma vantagem considerável: diferente de compositores como Bob Dylan, que se ancoram no poder dos versos para narrar, o quarteto progressivo é capaz de oferecer uma experiência completa de imersão: letras e melodias (e não nos esqueçamos da sonoplastia!) à serviço de uma boa história.

E é curioso que, enquanto tantas pessoas que buscam a fama nas artes tentam aplicar um suposto manual de regras do sucesso, artistas como o Pink Floyd rasgaram todo o protocolo existente no mundo pop, e decidiram que iriam fazer tudo do seu próprio jeito. E, mesmo assim, se tornaram um fenômeno.

Apesar dos inúmeros elementos que marcaram sua trajetória, ainda acredito que uma das melhores sínteses para explicar seu triunfo envolve o talento do grupo para contar boas histórias através de suas canções.

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Erros e acertos de se montar uma newsletter

Um primeiro balanço.

Não cheguei a completar um ano de newsletter (tá quase!), mas já bateu a vontade de realizar um balanço inicial da minha experiência aqui. Quero apresentar algumas escolhas feitas nesse processo que considero bem sucedidas, e, por outro lado, também falar de equívocos e até mesmo de problemas que ainda não consegui solucionar.

Depois de alguns anos publicando textos em blogs e até mesmo no Medium, em dezembro de 2023 criei enfim minha newsletter no Substack. Acho que eu não tinha a dimensão do que essa mudança significava, e, em um primeiro momento, continuei produzindo conteúdo da mesma forma que fazia em outros blogs e sites. Mesmo formato de texto, e, principalmente, sem respeitar uma periodicidade. Resultado: não mudou nada em relação ao que já fazia (como dizia Einstein, “insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”).

Prós

Foi aí que me deparei com uma coisa bem legal do Substack: ele oferece dados detalhados de como as pessoas reagem aos textos. Você sabe quantas pessoas leram, quantas pessoas deram like, quantas responderam, quantas compartilharam, e quantas assinaturas aquele post trouxe. Ele mostra até mesmo a porcentagem de pessoas que abriu o email. Pois é, parece legal, mas também pode te deixar paranoico.

Mas essas métricas me ajudaram em um ponto-chave: tentar aprimorar a experiência da newsletter. A partir de agosto, consegui superar uma de minhas maiores dificuldades desde que comecei a escrever na internet, que era a questão da regularidade. Passei a publicar um texto por semana. Claro que, para realizar isso, o planejamento geral passou a ser mais meticuloso, e precisei otimizar minhas horas vagas para fazer a coisa acontecer em um padrão de qualidade que julgo ser adequado.

E aí, sabem como é: quando reformamos uma parte da casa e a coisa fica bonita, vamos nos animando para reformar outros cômodos que estão precisando. Adaptei um logo e um nome para a newsletter (Além da Letra), e também fui descobrindo outras coisas para melhorar (criei uma página “Sobre”, um texto de agradecimento para novos assinantes e uma organização para a página inicial).

Após essas mudanças, os textos passaram a ser mais lidos, as assinaturas aumentaram, e, veja só, comecei a ter assinaturas pagas (lembrando que, na newsletter Além da Letra, eu deixo em aberto ao assinante escolher se quer pagar ou não, mas o conteúdo recebido é o mesmo para todos. Quem decidir pagar, portanto, estará essencialmente prestigiando o trabalho de escrita).

Enfim, eu tenho muitas coisas para agradecer e para comemorar. Mas quero aqui fazer um balanço honesto, abrangente, que aborde também o que não deu tão certo. Além das coisas que eu não faço ideia de como resolver (e quaisquer sugestões nesse sentido são bem vindas! Meu email: rararafaels@yahoo.com.br).

Contras

O primeiro ponto ruim envolve a necessidade de se escolher um nicho, um tema para a newsletter. Essa é uma das regras número 1 dos manuais dos produtores de conteúdo. E, depois de tantos anos escrevendo na internet, ainda me vejo incapaz de me enquadrar nessa premissa. Não sei se não consegui ou não me esforcei para realizar esse filtro de interesses. Não sei se quero filtrar. E nem se devo.

Mas esse aspecto é fichinha perto do que tem sido o ponto mais delicado e doloroso em torno das newsletters: o momento da postagem.

Pois é. A duras penas, descobri que um texto no qual você investiu muita pesquisa e horas de escrita pode ter pouca visibilidade, porque você postou no dia ou no horário errado. Você não está produzindo textos para um livro, ou algo que ficará exibido em uma prateleira de livraria, e que as pessoas interessadas naquele tema podem encontrar se quiserem. Se o seu texto de internet não for lido na ocasião da postagem, ele vai se perder na maré quase infinita de conteúdo das redes, com uma possibilidade bem pequena de ser resgatado posteriormente.

Minha primeira experiência ruim nesse sentido foi com o ensaio “A arte em um mundo saturado: para que?”. Dei um entusiasmado “click” para postar, e, de imediato, me deparo com um amigo do Facebook compartilhando a notícia da morte do Silvio Santos. Naquele instante, eu já lamentei que ninguém no meu entorno iria dedicar seu tempo de leitura à um texto que trata da importância do processo criativo.

O mais doido é que, logo depois disso, escrevi nas minhas redes sociais uma espécie de texto-epitáfio sobre Silvio Santos, algo escrito às pressas, mas que gerou mais interesse e engajamento que o post da newsletter. O que mostra como a adequação ao assunto do momento (os tais “trend topics”) é um critério importante para quem produz conteúdo nesse suporte.

(uma possível solução: ficar de olho no Twitter ou Bluesky para acompanhar o balanço das notícias na hora de postar. Ponto negativo de se fazer isso: eu tomei horror do modelo do Twitter, com cascatas de notícias postadas de modo bombástico, irônico e agressivo).

O mais curioso é que esse texto da arte que flopou foi postado logo após meu texto mais popular da newsletter: “Sensibilidade digitalizada (ou ‘só é belo se estiver na tela’)”. Ainda não sei avaliar se o naufrágio do texto de arte teria sido por conta 1) da escolha do tema; 2) da maneira como abordei esse tema; ou 3) pela sincronia com a notícia da morte do Silvio Santos.

Mas a experiência mais amarga veio do meu post mais recente, “Qual o sentido de um trauma?”.  Foi doloroso porque, quando escrevi a primeira versão, fiquei muito empolgado, achei que tinha produzido o melhor texto da newsletter. Porque uni dois dos elementos que mais me interessam na escrita não-ficcional: arte e existencialismo.

O problema é que escrevi e reescrevi o texto ao longo da semana, mas também estava há dias dedicado a inscrever um formulário burocrático do meu serviço, cujo prazo estava já no fim. Só consegui postar a newsletter no domingo a noite. E eis que alcancei uma façanha do azar: fiz meu post bem na hora da guerra das cadeiras no debate da prefeitura de São Paulo.

Aquilo me perturbou por vários motivos. Além do que já mencionei sobre o quão ingrato é remar contra a maré dos trend topics, tem uma outra questão importante: meu texto tenta abordar a defesa de uma ideologia oposta à do radicalismo que pauta os algoritmos da internet. Foi um texto escrito meio que para ser um antídoto dessas pautas agressivas que tem cativado o inconsciente coletivo das redes sociais. E eis que justamente um acontecimento desses ocorre bem na hora que postei. As pessoas só queriam falar da “cadeirada”.

*

Enfim, apesar dessas questões controversas, no geral eu tenho gostado da experiência da newsletter. Tem sido ótimo escrever com regularidade e também acompanhar o retorno e os debates em torno disso.

No mais, espero que esse texto aqui seja interessante para inspirar ou informar todos que também operam nessa louca jornada da produção de conteúdo reflexivo na internet. Eu não me desanimo com os erros e deslizes, porque penso que um projeto desses precisa ser pensado à longo prazo. Os problemas pontuais são oportunidades de aprendizado. Com o tempo, vamos aparando as arestas e melhorando tudo.

O mais importante: eu agradeço muito a todos que tem lido e acompanhado essa newsletter!

Agradeço por ler até o fim esse texto da newsletter Além da Letra – Rafael Senra! Fica o convite para que assine para receber novos textos e para apoiar meu trabalho.

 

Qual o sentido de um trauma?

O que a arte pode nos dizer sobre o sentimento de ter sua vida paralisada.

1.

Um dos poemas mais conhecidos da história da literatura brasileira é No Meio do Caminho, de Carlos Drummond de Andrade. Ao longo de quase todo o poema, nos deparamos com uma repetição em stacatto de um mote tão simples quanto perturbador: tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra. E isso é repetido por mais três ou quatro vezes nos versos seguintes. Muitos consideram que trata-se de um poema aborrecido e quase preguiçoso, mas há de se imaginar o impacto que a obra teve quando foi publicada no início da década de 30, quando boa parte da intelectualidade brasileira se via ainda bastante apegada às regras da poesia clássica.

Existe um motivo para que o poema do Drummond insista no fato de haver uma pedra no meio do caminho. O fato em si poderia parecer irrelevante, não fosse a repetição intermitente. Obviamente, o caráter aberto da obra poética permite que façamos inúmeras interpretações, mas várias leituras desse poema dão a entender que, com o recurso da interdição repetida ad infinitum, o poeta busca representar um sentimento universal: o trauma.

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No livro Força da Lei, o filósofo Jacques Derrida traz um conceito que aprofunda a questão do trauma: a noção de aporia. Do grego, “a” = alfa privativo e “poros” = caminho, passagem. Trata-se, portanto, da impossibilidade de seguir em frente, da ausência de caminhos. A aporia enquanto conceito trata de uma situação aporética, um contexto em que a pessoa se vê diante de fronteiras que podem ser físicas ou emocionais, e que, para ela, simbolizam barreiras que parecem (quase) intransponíveis.

Assim é o trauma para quem o vivencia: uma pedra no caminho. A repetição do poema de Drummond representa o drama do trauma, sua situação aporética: apesar de ocorrer em um momento isolado no tempo, a pessoa parece condenada a vivenciá-lo em seu íntimo, e a reviver esse acontecimento inúmeras vezes dentro de si.

Assim, fica a dúvida: os artistas deveriam apenas buscar representar o trauma enquanto um fato da vida? Ou as obras de arte seriam capazes de fornecer mapas que permitam às pessoas driblar a pedra que interfere em seus caminhos?

2.

A série Vida Após a Morte (disponível na Netflix) tem um título diretamente ligado a seu conteúdo: apresenta relatos e análises de várias pessoas que viveram (ou estudam) as chamadas EQM – Experiências de Quase Morte. O primeiro episódio dessa série documental apresentou uma história que me fez pensar bastante sobre o papel da arte em nossas vidas.

A série inicia com o relato de Mary Neal, uma médica que, em 1999, viajou para o Chile na companhia do marido e alguns amigos. O ponto alto de sua viagem envolvia embarcar em um caiaque e descer por várias quedas de uma cachoeira da região. Apesar de todos ali serem remadores veteranos, o caiaque de uma das moças ficou preso na passagem principal, o que levou Mary a ir parar em uma parte mais intensa da corredeira. Isso a fez cair de uma enorme queda d’água, e, quando a encontraram, ela estava desacordada no meio de vários rochedos, com inúmeras fraturas e lacerações por todo o corpo. Sem muita esperança, seus amigos aplicaram os primeiros socorros, e eles estimam que ela deve ter ficado sem oxigênio no cérebro por mais de 30 minutos.

Nesse período, Mary teria tido visões típicas de muitas pessoas que passaram por traumas parecidos. Ela narra que perdeu a sensação de estar em seu corpo físico, sentindo que seu espírito foi “lançado para o céu”. Nesse momento, ela relata ter entrado em um túnel de luz e se encontrado com “um grupo de criaturas” (talvez por sua profissão de médica, ela hesita em chamá-los de pessoas, seres ou espíritos). Em paralelo, ela também conseguia ver seus amigos esforçando para resgatá-la do acidente. Mary diz que não queria voltar para o próprio corpo, e que até se sentia em paz diante do ocorrido. Entretanto, os seres disseram que não era a sua hora de partir. Nesse momento, seus amigos conseguiram reanima-la, e, após atendimento médico, ela conseguiu não apenas sobreviver, mas até mesmo superar as sequelas físicas, além de não ficar com nenhuma sequela cognitiva – algo que parecia completamente implausível, dado o longo tempo sem oxigenação cerebral.

É uma história incrível. Mas ela não acaba aí.

Na verdade, o que Mary conta a seguir me pareceu ainda mais estarrecedor. (caso queira assistir a série, recomendo que pare de ler o texto aqui mesmo, pois seguirei dando importantes spoilers).

Quando a médica estava em sua experiência de EQM, um dos seres do outro plano relatou que Willie, um de seus filhos, teria uma morte precoce. O garoto tinha apenas nove anos de idade na época do seu acidente no Chile. Naturalmente, diante de uma informação tão grave, Mary perguntou: “Por que Willie? Por que meu filho?”.

E a resposta de um dos seres foi: “a beleza vem de tudo”.

O tempo passou, Mary se recuperou, e seu filho chegou a passar dos dezoito anos. Ela chegou a acreditar que os planos do destino mudaram em relação à Willie. Até que, subitamente, um carro desgovernado surgiu do nada enquanto o rapaz esquiava, invadindo a pista e o atropelando. Ele morreu na hora.

Mesmo depois de passar por experiências tão inusitadas sobre o limiar da existência física, Mary vivenciou um luto pesado envolvendo o acontecimento com seu filho. Apesar disso, ela confessa que a EQM mudou sua visão sobre a morte. Para ela, não se trata de um ponto final, mas apenas da perda material de alguém, cuja consciência continua a existir após o corpo perecer.

Sei que histórias como essa mexem com as crenças de muita gente, e aqueles que se pautam por certa dose de ceticismo poderão atribuir os relatos de Mary e de outras pessoas como sendo uma espécie de sonho gerado pela situação de quase-morte. Agnósticos talvez hesitem em refutar, mas também não queiram comprar todas as partes da história, considerando que se parece demais com algum tipo de “fanfic mística” ou algo assim. No meu cotidiano de trabalho, convivo com pessoas que pensam assim, e longe de mim querer questionar suas escolhas de fé ou de visão de mundo. Mas o que me fez querer mencionar essa história foi a frase “a beleza vem de tudo”, dita pelos seres que Mary viu no outro mundo. As implicações dessa premissa podem interessar a todos, independente das suas crenças pessoais.

Quando acabei de assistir a esse episódio da série, não conseguia deixar de pensar nessa frase. Ela é, basicamente, uma premissa poética. Não apenas parece um verso poético em si mesmo, em sua forma que remete aos haikais ou koans orientais, sugerindo mais do que explicando. Mas a própria frase (ou verso) traz como possível significado uma interpretação do que seria a própria essência da atividade poética. Eu consigo imaginar a cena de um professor de literatura em Yale ou Cambridge ouvindo seus impacientes alunos do primeiro período “professor, por que escrever poesia?”, e lhes respondendo “a beleza vem de tudo”.

Sobre céticos e crentes, vale mencionar um estudo do neurocientista Andrew Newberg que afirma que nada bombeia mais sangue (fluxo sanguíneo) para o lobo pré-frontal cérebro do que o ato de orar em agradecimento pela vida. A recomendação também pode ser otimizada pelos ateus, que, se não acreditarem em um Deus transcendente, podem repetir para si mesmos algumas frases de gratidão pelas circunstâncias fortuitas de sua vida, e assim se beneficiarão desse fluxo sanguíneo a seu modo.

O fato é que essa descoberta científica da oração de gratidão mostra que um dos maiores benefícios fisiológicos (ou espirituais) que podemos fazer por nós mesmos envolve o reconhecimento da beleza da vida. Pois o ato de orar e agradecer pela vida significa, basicamente, celebrar a beleza de tudo.

Nesse sentido, a literatura e as artes em geral trazem conteúdos eficazes como possibilidade de superação de traumas. Quando uma pessoa passa por acontecimentos difíceis na vida, será bem improvável que ela possa perceber qualquer vestígio de beleza em meio à dor. Isso ocorre porque o trauma impede que haja um distanciamento saudável do acontecimento.

Para conseguir esse distanciamento, a pessoa que faz terapia ou que produz arte estará, basicamente, organizando suas emoções e pensamentos na dimensão da linguagem. Elaborando sua dor em uma história inteligível. A maior pedra no caminho das pessoas é a impossibilidade de narrar. Em seu ensaio Sobre o Conceito de História, Walter Benjamin conta a respeito de soldados que voltavam do front de batalha tão afetados pela experiência da guerra que sequer conseguiam falar sobre o que lá vivenciaram.

No fim das contas, a pessoa é capaz de ressignificar os acontecimentos de sua vida, desde que ela seja capaz de, primeiramente, traduzir a memória desses fatos através de seus instrumentos de linguagem. Seja a linguagem verbal usada na literatura, no jornalismo, nos roteiros de cinema e teatro… ou seja a linguagem simbólica da pintura, da música, da dança e de tantas outras artes.

A linguagem permite organizar um mosaico de imagens que podem representar os altos e baixos vividos pela pessoa. Nesse sentido, é importante destacar que as melhores histórias nunca são lineares ou amenas. O potencial transformador de uma história está na constatação da superação de um trauma. É quando a pedra se transforma em flor. Ou o chumbo em ouro: a alquimia do narrar. Em vez de obstruir o caminho, a superação embeleza o local por onde você passa. E essa beleza não é apenas sua. Pois quem supera um trauma cria beleza no mundo. O exemplo dado por uma única pessoa pode motivar milhares.

3.

Anos após escrever No meio do caminho, Drummond escreveu o poema Consolo na praia, onde afirma que, mesmo com o caminho interditado, outros atalhos e rotas podem ser recriadas. Encerro meu ensaio com os versos do poeta mineiro:

Vamos, não chores.

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis carro, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho.

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É oficial: me aposentei dos shows ao vivo

Não é um clickbait.

Algumas pessoas me conhecem como escritor. Outras como autor de quadrinhos. E há quem me conheça como músico. O fato é que, mesmo sabendo que o mundo valoriza os especialistas, nunca abandonei a maior parte das atividades artísticas que faço, e o motivo é que eu gosto de cada uma dessas tarefas. Deveria justificar, não é?

Teoricamente sim – o problema é a nossa consciência crítica, que as vezes é mais crítica que consciente. Você não deixa de pensar que, se especializasse em uma só prática, sua vida seria muito mais fácil. Você teria mais possibilidades técnicas, maior chance de reconhecimento, e até poderia sonhar em ser decentemente remunerado.

Mesmo sabendo disso tudo, banquei a vida de multitarefa, sacrificando feriados e fins de semana agindo como um sísifo no meu escritório, equilibrando os malabares e pedalando meu triciclo enquanto soletro em javanês. E ainda faço isso. É uma escolha consciente, que sustento com alegria e sem reclamar.

O que nunca falei tão abertamente foi sobre um fantasma que me assombrou ao longo de muitos anos. Talvez metade da minha vida até agora, devo dizer:

A dificuldade de levar meus projetos musicais para os palcos. De tocar ao vivo.

Para ilustrar a longevidade dessa obsessão, lembro que, em 2003, tinha acabado de ingressar no curso de Letras. Vi um colega de turma tamborilando os dedos na carteira ao lado. De imediato, perguntei, com os olhos arregalados: “você é baterista?? Quer montar uma banda comigo?”. Meio acanhado, ele subitamente recolheu seus dedinhos agitados: “calma, cara, eu sou só ansioso mesmo”.

Ao longo desse tempo, eu cheguei a montar várias bandas, a maioria de covers, e umas poucas autorais. Nenhuma delas ficou em atividade por mais de um ano. Acho que poderia escrever um livro cômico sobre minhas desventuras com bandas. Nessa área, acontece meio que uma sincronicidade ao contrário. Quem já leu a história do diretor de cinema Terry Gilliam tentando filmar Dom Quixote sabe do que estou falando. Sempre que eu tentava montava um projeto musical dedicado aos palcos, algo conspirava para que ele implodisse.

Até que me mudei para o Amapá, em 2018, e achei que seria diferente. Na verdade, foi, pois graças aos amigos e profissionais da música que encontrei aqui, consegui gravar vários discos autorais, que tiveram reconhecimento, incluindo duas indicações ao Grammy Latino.

Mas não consegui montar uma banda de apoio para tocar esse material ao vivo. Até convidei uma meia dúzia de pessoas para esses projetos. Uns não tinham tempo, outros aceitaram mas não tiraram as músicas, alguns faltavam aos ensaios, uns nem respondiam as mensagens, enfim, teve de tudo. Até quando tentei montar um power trio a coisa empacou. A sincronicidade reversa não deu trégua nessas duas décadas.

Você deve estar se perguntando “mas será que o Rafael insistiu pra valer nessa história de tocar ao vivo?”. A resposta é: não. Eu insisti, pero no mucho. E perceber isso foi um ponto de virada.

Ao longo dos anos, achei que a história de tocar ao vivo era como uma lei inquestionável do universo. Um axioma talhado na pedra. Quando estava nas filas de banco, ficava regendo arranjos imaginários do meu show onírico. Era, na verdade, um mecanismo de fuga. Mas, para esse mecanismo ser tão estimulante, vem o choque de realidade: ele não podia acontecer. Porque, se fosse real, eu não poderia mais imaginar tão amplamente, não é?

Passei anos pensando de que modo poderia realizar essa história. Mas, ao longo desse tempo, nunca cogitei pra valer se eu deveria realizar; ou, pior: se eu realmente queria.

Então porque insistir nessa aventura quixotesca? Acho que me aferrei com muita intensidade a uma percepção que perdeu o prazo de validade: a ideia de que, para existir na indústria da música, um artista precisa atuar no tripé “gravação-shows-divulgação”. Porque era assim antigamente, né. Quando existia uma indústria, quero dizer. Existiam gravadoras, você tinha um disco produzido pelo Mayrton Bahia, tocava no Faustão, o clipe passava no programa da Sabrina Parlatore na MTV, e depois você dava uma entrevista engraçada para o Jô Soares, e de quebra ganhava uma matéria de capa na Revista Bizz assinada pelo Forastieri ou Pedro Alexandre Sanches.  

Sim, é o tipo de pensamento que você elabora na adolescência, e passa os anos carregando como se fosse um ovo sensível, e vai cuidando com carinho desse pensamento delicado, protegendo-o das pessoas impiedosas e do mundo mal lá fora. Só que, você não percebeu, mas o mundo foi mudando ao redor desse pensamento, desse ovo (e ele nem chocou).

Você não percebeu que a pirataria bombardeou o que chamávamos de indústria da música. Enquanto a Bizz e a MTV se tornavam apenas um quadro na parede, como dizia o poema do Drummond, boa parte dos bons músicos migraram para o sertanejo, ou foram tocar covers em barzinho (isso pelo menos eu consegui realizar por alguns anos), ou viraram professores de conservatório, ou montaram estúdios para gravar jingles políticos. Mas o tripé “gravação-show-divulgação” não existe mais para a maioria das pessoas.

Quando a mim, vi a realidade bater na minha porta, até que cheguei no “osso” dessa questão, no seu ponto mais estrutural: ok, eu até gosto de tocar ao vivo. Mas, no fim das contas, o meu barato na música é escrever canções. E ponto. Não faço questão nenhuma de ser eu a cantá-las. Eu me forcei a ser o intérprete desse material, mas sou o primeiro a reconhecer meu caráter canhestro em carregar essa tocha.

Veja só a ironia: esse ano, lançarei um disco novo (a primeira prévia dele saiu hoje, o single Portal da Samaúma, que interpretei ao lado da querida cantora Lara Utzig, da banda Desiderare). Esse trabalho completo de inéditas se chama Sonhando Acordado. Mas é a primeira vez em muito tempo que não sonho acordado sobre como vou interpretar essas músicas num projeto imaginário utópico cósmico doido. E devo confessar que me sinto bem com essa decisão.

Sei que não devo satisfações a ninguém, mas gostaria de explicar um pouco mais profundamente porque cheguei nessa decisão. Pode pular essa parte do texto se quiser (ele acaba logo depois, na verdade).

Vou citar aqui um filósofo oriental do qual gosto muito. Ele se chama Lao Tsé (ou Lao Tzu, tem várias grafias), e viveu cerca de meio século antes de Cristo. Ele escreveu o Tao Te Ching, que é um dos livros mais necessários já escritos.

É o tipo de obra que faz a gente querer soar profundo, mas vou falar sobre ela aqui de um modo meio grosseiro, e peço perdão desde já. O fato é: a maioria das pessoas no planeta são tapadas desde a época de Lao Tsé. E, quando completou quarenta anos, o próprio filósofo percebeu por si mesmo que a burrice generalizada não tinha muito remédio. Ele decidiu abandonar seu cargo na biblioteca real e sair pelo mundo, talvez, sei lá, ir vender a sua arte na praia.

A decisão estava tomada, mas ele não contava que um dos soldados do Rei Wen era sem noção e iria empatar o seu caminho. O encarregado disse que só autorizaria a saída da corte caso o notável filósofo redigisse algo que documentasse toda a sua sabedoria para as futuras gerações. Ok, Lao era mesmo um sujeito muito sábio, mas provavelmente não estava a fim de passar mais tempo no meio daqueles néscios. Em três dias, escreveu 81 versos e entregou as páginas ao soldado. Deu no pé e nunca mais voltou à China.

Mesmo escrito na correria, o Tao Te Ching é um livro essencial, uma verdadeira joia literária, poética e existencial. Um de seus poemas é destinado aos que acreditam na ideia de vencer na vida por esforço próprio. Em vez de reforçar essas falácias de coach, Lao Tsé apresenta um conceito que dá nó na nossa cabecinha ocidental: o “não-fazer” (wu-wei).

Basicamente, ele está dizendo que existe um fluxo de acontecimentos passando pela vida de todos nós, como se fosse um rio. E a maior parte das pessoas está remando na direção oposta, enquanto repetem discursos de meritocracia, sacrifício, trabalho árduo e outras frases feitas. Em vez de agir assim, você já tentou apenas flutuar com a maré? Já tentou parar de insistir? Deixar o orgulho de lado, só por um momento? Se sim, o que aconteceu? Deu tudo certo no final?

Ou seja: por que as coisas precisam sempre ser do jeito que você idealizou? A natureza é muito mais bela que os seus planos, e veja como ela é irregular, ela tem formas pontiagudas, que parecem assimétricas, e ela sempre muda, ela está à deriva dos acontecimentos, e, no entanto, não há nada mais bonito. Por que não deixar seu orgulho de lado e permitir que as coisas se acomodem por si mesmas?

Diz o Tao Te Ching:

“Na busca do conhecimento, todos os dias algo é adquirido

Na busca do Tao, todos os dias algo é deixado para trás

E cada vez menos é feito

até se atingir a perfeita não ação”.

E arremata:

“Domina-se o mundo deixando as coisas seguirem o seu curso.

E não interferindo”.

Enfim, o fato é que, por muito tempo, a ideia de tocar ao vivo se tornou um protocolo na minha cabeça. Mas agora deixo os protocolos para o serviço público. Estou muito feliz gravando discos, é uma atividade que faço naturalmente, e que cumpre um ciclo completo para mim.

Além do mais, os irmãos do Oasis finalmente fizeram as pazes. Graças a eles, a Ticketmaster e outras empresas de ingressos não vão falir por culpa da minha aposentadoria dos palcos.

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A Contradição de Perfect Days

Um novo clássico de Wim Wenders, ou apenas um movimento em falso?

A cada novo filme lançado no século XXI, críticos e espectadores de cinema constatavam cada vez mais que a fase de ouro do diretor alemão Wim Wenders havia ficado no passado. Ainda que diversos documentários recentes de sua lavra tenham sido elogiados (com razão, a meu ver), algumas novas obras de ficção eram recebidas com frieza. Esse jejum de entusiasmo foi enfim quebrado em 2023, quando Perfect Days (Dias Perfeitos) foi saudado como o retorno de Wenders ao patamar de excelência que todos esperavam. Creio que não encontrei uma resenha negativa desde que ouvi falar do filme pela primeira vez.

Perdoem o trocadilho, mas eu esperava por um dia perfeito para assistir ao filme, e o motivo é que sempre elenquei publicamente a figura de Wim Wenders como meu cineasta preferido. Na verdade, nunca busquei atualizar esse pódio imaginário da sétima arte, e talvez eu tenha mais filmes preferidos na filmografia de um François Truffaut ou Woody Allen do que na irregular lista de obras feitas por Wenders. A eleição do diretor como preferido provavelmente veio do impacto de assistir Paris, Texas na adolescência: provavelmente foi a primeira vez que tomei consciência do que era um filme de arte, através da verdadeira epifania de vislumbrar a saga do pitoresco Travis Henderson e seu filho pelas paisagens solitárias do sudoeste dos Estados Unidos.

Ao longo de mais de cinquenta anos de carreira, a longa filmografia do diretor se manteve bem consistente em uma vertente específica do gênero cinematográfico: os documentários. Foram muitas obras primas ao longo dos anos, como Tokyo GA, A Trick of Light, Buena Vista Social Club, The Soul of a Man, Pina, ou The Salt of the Earth (que retrata o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado). Em relação à filmes de ficção, podemos dividir por períodos: obras mais existenciais e sombrias nos anos 1970, filmes primorosos nos 80, e obras razoavelmente desiguais nos anos 90. A partir do século XXI, a melhor definição da produção ficcional de Wenders vem do título de um de seus primeiros filmes: Wrong Move (que saiu no Brasil como Movimento em Falso, tradução que também se adequa ao meu trocadilho aqui). Nesse sentido, a depreender do que tanta gente tem falado, Perfect Days parece significar um retorno de Wenders a seus dias mais inspirados.

Quanto a mim, apesar de gostar do filme (e achar que é a melhor obra ficcional do diretor em muito, muito tempo), tive meus senões. Assim, em vez de engrossar o coro das resenhas entusiasmadas, resolvi dedicar esse texto a tratar de algumas questões delicadas.

A primeira cena do filme parece resumir uma impressão geral que marca meu incômodo com a obra. É quando somos apresentados ao protagonista Hirayama, no momento em que ele acorda ainda cedo para ir trabalhar. O primeiro take consiste de um zoom (na verdade, um “dolly in”, que é o movimento de câmera através de trilhos, aprofundando a perspectiva) no rosto do personagem. Aquilo me causou uma impressão suspeita, que permaneceria ao longo do filme.

Qual impressão? A de que Wenders demonstra uma segurança técnica que parece se contrapor à singeleza da história. É como se o resultado fosse maior do que o conteúdo narrado. Veja, por exemplo, as cenas em que Hirayama ouve suas fitas cassete no furgão. O som é aberto para o espectador em estéreo, e o que escutamos ao assistir tais cenas pode soar como qualquer coisa – menos como uma fita cassete. Se parece mais com aquilo que ouvimos ao dar play no Spotify (por sinal, o serviço de streaming rende uma boa piada na cena de Hirayama com sua sobrinha).

A textura digital do filme foi outro ponto incômodo, sobretudo quando percebemos que o personagem vive alheio a qualquer tipo de modernidade, detido em sua máquina fotográfica analógica, seus livros antigos e suas já citadas fitas cassete. Apesar disso, a filmagem e a edição de Perfect Days parecem alinhadas com o que há de mais moderno no mundo digital. Nesse sentido, Wenders se apropria do fetiche analógico, sem que o resultado demonstrado traga para o espectador qualquer sabor da experiência analógica real. É semelhante aos livros lidos por Hirayama, que nos apresentam os nomes de autores como William Falkner e Patrícia Highsmith, mas nenhum verso ou trecho das obras literárias em si.

Qualquer admirador de Wenders sabe que ele foi profundamente influenciado pelo diretor japonês Yasujiro Ozu (na verdade, o documentário Tokyo GA, dirigido por Wenders, talvez tenha sido o responsável por fomentar um hype – ainda crescente – em torno de Ozu). Entretanto, as singelas películas dirigidas pelo japonês demonstram um característico minimalismo formal, como o uso de um único tipo de lente (50 mm) ou a repetição implacável do mesmo ângulo de visão (as famigeradas “tomadas de tatame”, feitas no nível dos olhos de uma pessoa ajoelhada ou de uma criança). Esses recursos propositalmente limitados de Ozu me remetem ao estilo gráfico do Ukiyo-e, com linhas claras, tons pastéis, e um uso estratégico dos espaços vazios na tela.

Quanto a Wenders, apesar de fazer um filme com tema contemplativo e ambientá-lo no Japão, sua filmagem é tipicamente ocidental e moderna, com muitas cenas fragmentadas, cortes rápidos e toda a gramática visual própria do cinema contemporâneo. Isso me trouxe uma sensação geral de descompasso, e, em diversos momentos, parecia que o diretor estava fazendo um pastiche de si mesmo. Como se ele quisesse resgatar características de seu melhor cinema no passado, porém atualizando-as para o padrão desse novo século.

Enfim, apesar da minha resenha parecer pessimista, devo dizer que gostei do filme, que considerei ser bem intencionado, com uma história cativante e cheia de bons momentos. Além do mais, Wim Wenders é sempre brilhante quando enquadra os espaços urbanos, evitando as óbvias paisagens “instagramáveis”, e sendo capaz de enxergar uma beleza prosaica nos lugares representados em seus filmes.

Contudo, mesmo com um saldo geral positivo, não consegui deixar de pensar que é uma obra muito autoconsciente de suas próprias intenções. Se a excelência técnica do atual cinema de Wenders parece muito adequada para seus documentários, a leveza e a singeleza sugeridas pelos enredos de seus filmes de ficção parecem entrar em contradição com o virtuosismo das suas produções modernas.

No fim das contas, penso que Perfect Days merece ser celebrado, mas está longe de trazer aquilo que o cinema de Wim Wenders tem de melhor.

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