Quando o realismo puxa a espada

Em tempos de decolonialidade, identitarismo e pós-modernidade, o que sobrou para a literatura de fantasia?

Certo dia, uma autora que sigo nas redes sociais publicou um post comentando o livro Animal, da escritora e jornalista norteamericana Lisa Taddeo. Em sua breve e informal resenha, a autora destacava (aqui, escrevo com minhas palavras) a qualidade de se tratar de um texto escrito sob a perspectiva de uma mulher potente, que não pede desculpas para ninguém, e que diz com todas as letras o que realmente pensa sobre os homens (não são pensamentos lisonjeiros). A autora do post arrematava com a afirmação de que os homens deveriam parar de ler histórias com “elfinhos” e ler as obras de Lisa Taddeo.

O espantalho que ela traz para a punch line no fim do post não é outro senão as atualizações do gênero épico para a contemporaneidade, no que convencionalizamos chamar de fantasia (não confundir com o fantástico ou o realismo fantástico, que são bem diferentes). No século XX, autores como J.R.R. Tolkien definiram o protótipo dessa recriação temática, que se tornaria um filão rentável e popular em diversas mídias ao longo dos anos. Seja no audiovisual, quadrinhos, ou literatura, as histórias de fantasia rendem alguns dos mais lucrativos produtos da indústria do entretenimento recente.

Eu consigo entender porque alguém reduz a fantasia ao rótulo de histórias de “elfinho”. Para começo de conversa, existe o preconceito de que seriam narrativas de caráter infantojuvenil, constantemente vistas como “coisa de criança” aos olhos dos supostamente “verdadeiros” especialistas em crítica literária. Além disso, algumas das obras tradicionais ou mais conhecidas desse gênero trazem valores que podem ser interpretados como sendo conservadores. Se pegarmos os autores da primeira metade do séc. XX, como Tolkien, C.S.Lewis e outros, encontraremos uma visão de honra e de ética que podem ser lidas como antiquadas (sem contar que, apesar da inspiração nos mitos pagãos do Norte da Europa, Tolkien e Lewis eram cristãos inveterados).

A fantasia do século XXI é bem menos restrita nesse recorte moral (quem assistiu a série televisiva de Game of Thrones percebeu isso muito bem). Mas, para muitos espectadores e leitores do sexo masculino, o que realmente importa envolve menos os códigos de conduta ou as questões morais, e sim os personagens masculinos com seus uniformes de guerreiro e espadas no melhor estilo Conan o Bárbaro. Creio que essa é a chave para decifrar a crítica que li no post. Pois, ainda que o gênero de fantasia tenha tido uma bem-vinda renovação de público nos últimos anos, seus detratores não são poucos.

Na minha trajetória de leitor literário, creio que fiz o oposto do que a autora recomendou: abandonei as histórias de “elfinho” e mergulhei em livros realistas e militantes. Aos 21 anos de idade, iniciei o curso de Letras, e a literatura de fantasia não era mencionada nas nossas aulas nem como nota de rodapé.

Devo dizer que eu não era um leitor assíduo de obras de fantasia. Venho de uma família de classe trabalhadora do interior de Minas Gerais, e cresci em uma era pré-internet, ou seja, meu acesso a esse tipo de livros não era tão amplo e facilitado quanto eu gostaria. Meu contato mais considerável com esse gênero foi através de quadrinhos que conseguia encontrar nas bancas.

Mas vejam só a ironia. Aos 22 anos, eu estava no terceiro período de Letras, e as demandas do curso me levavam a estudar pelo menos dois tipos de obras: as do cânone literário (romances, contos e poemas ditos “clássicos”, todos esses que conquistaram lugar cativo na história da literatura) e também obras que propunham um “contra-cânone”, na tentativa de reabilitar a literatura de países e regiões que foram ou são colônias, bem como obras de autores que escreviam sobre minorias representativas (que discutiam questões de gênero, raça e classe). Pois foi justo nesse período que tive a mais intensa experiência de leitura com uma obra de fantasia.

Lembro que morava em um bairro chamado “Fábricas”, que, em outros tempos, foi um reduto de operários das empresas têxteis de São João del Rei. Na época, quase todas as casas eram feitas no mesmo modelo, o que dava um aspecto de subúrbio americano ao lugar. Várias dessas casinhas idênticas eram repúblicas estudantis.

Certo dia, eu e um amigo visitamos a república de alguns amigos, e fomos apresentados aos novos moradores: dois irmãos que adotavam um estilo “gótico” ou dark, e pareciam ter saído diretamente de algum club britânico de Manchester ou qualquer cidade do auge do pós-punk dos anos 80. Apesar de não ter estreitado uma amizade considerável com os irmãos, eles compartilharam um presente fundamental para minha formação cultural: um CD de MP3 com algumas músicas de um trio escocês cujo nome demorei para memorizar.

Foi a primeira vez que ouvi o som mágico dos Cocteau Twins. Aquele CD trazia quase todo o disco mais famoso dos criadores do dream pop: Treasure. Tinha também algumas músicas do álbum que se tornaria o meu preferido deles, Four Calendar Cafe.

Por alguma coincidência feliz do destino, nessa mesma época eu tinha ganhado de presente do meu pai o livro Stardust, escrito por Neil Gaiman e ilustrado por Charles Vess. Quando comecei a ler, liguei a trilha dos Cocteau Twins, apenas para descobrir que aquelas músicas pareciam ter sido feitas para o livro de Gaiman. Essa combinação da narrativa ilustrada de fantasia com as músicas etéreas dos CT trouxeram a mais profunda imersão que já experienciei com obras de arte. Eu passava horas lendo, com as músicas no repeat, e, quando acabava, é como se eu tivesse tido uma verdadeira alteração de consciência, como se eu estivesse dentro da história.

O enredo é centrado no protagonista Tristan Thorn, um jovem que mora em um vilarejo de estilo medieval, que vive entediado como quase todo adolescente, até a noite em que avista uma estrela cadente caindo dentro de uma floresta cujo acesso é proibido. Thorn atravessa o muro de pedra que separa sua realidade sem graça de um mundo mágico onde existem bruxas, fadas, piratas em navios voadores – e, o principal, onde uma estrela cadente pode ser uma mulher. Estruturalmente, é um típico romance de formação (bildungsroman), assim como o são Demian, de Hermann Hesse, ou O Apanhador no Campo de Centeio, de Salinger, mas que utiliza símbolos e motivos do gênero de fantasia.

Lembro vividamente de um fim de semana em que devorei muitas das páginas enquanto ouvi o CD dos Cocteau Twins umas mil vezes. Estava na casa dos meus pais, em Congonhas, e saí para caminhar sem saber se buscava algum vestígio de realidade ou se continuava saboreando aquele universo de imagens mágicas. Era época de outono, e cada árvore ou ipê típicos do interior de Minas pareciam com as espécies ancestrais da floresta mágica de Stardust.

Mas todo esse encanto durou pouco. Meses depois, acabei emprestando o livro de Gaiman, e nunca mais o consegui de volta (tenho em PDF hoje em dia). Não me importei tanto na época, pois, com o avançar do curso de Letras, acabaria negligenciando os livros de fantasia como sendo obras de entretenimento sem muita profundidade. Para fazer média com meus professores e meu meio social, tratei de ler apenas obras pertencentes ao cânone da alta literatura ou ao contra-cânone dos Estudos Culturais. Com ênfase, claro, em obras que hoje em dia chamamos de decoloniais, várias delas com tramas naturalistas e realistas, todas com forte apelo social e político.

Da maneira como enfatizo as obras lidas no curso de Letras, fica parecendo que não tenho muito apreço por elas. Eu gostava, e ainda gosto. O que quero ressaltar aqui, na verdade, é como o gênero de fantasia apresenta também suas qualidades e pontos fortes. No fim das contas, o valor estético e ideológico das histórias de fantasia não precisa ser posto à prova através de comparações forçadas ou de estereotipias.

Ainda hoje, continuo lendo e estudando obras canônicas, mas também reintegrei leituras de fantasia na minha rotina, e, em 2023, até cheguei a publicar um artigo sobre Tolkien em uma prestigiada revista acadêmica, marcando uma inédita aproximação acadêmica com os estudos de fantasia.

Como eu disse antes, entendo porque um leitor do cânone pode menosprezar as obras de fantasia. O pacto de verossimilhança proposto nessas histórias inclui seres como dragões, magos e, claro, os tais “elfinhos”, o que parece esvaziar qualquer tentativa de pensar nesses textos como panfletos políticos ou militantes de algum modo.

Claro que, na minha opinião, devemos debater e relativizar a lógica estrutural do machismo, e, corroborando a autora que citei no início do texto, devemos sim ler escritoras como Lisa Taddeo. Mas isso não implica em menosprezar as histórias de fantasia. Essas obras trazem uma maneira diferente de cultivar laços com nossa ancestralidade, com toda uma simbologia que remete ao mundo natural, e que traz ecos profundos da galeria mítica que habita nosso inconsciente coletivo.

Sei que alguns desses conceitos parecem risíveis para qualquer adepto das teorias pós-modernas ou identitárias. Mas sou dos que acreditam que as histórias de fantasia – ou os contos de fadas, a epopeia moderna e outras variantes – podem nos oferecer conteúdos ricos e relevantes em vários sentidos também.

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