A verdade que você busca está escondida atrás do conforto
Os EUA elegeram Donald Trump, e todos estão falando sobre isso. É o meu caso também – mas precisarei de um breve preâmbulo.
1. O caso da “bolsa vermelha”
Esses dias, circulou nas redes sociais uma cena extraída da série catalã Merlí, Sapere Aude (uma série derivada da prestigiada Merlí) muito interessante:
Uma professora inicia sua aula propondo um experimento para os alunos: ela quer provar que a “mente humana é frágil” e que “temos uma tendência a falar o que os outros fazem e dizem”. Ela exibe uma bolsa e pergunta qual é a sua cor. “Verde”, dizem os alunos.
A professora combina então uma brincadeira com os alunos presentes na classe: se ela lhes perguntar a cor da bolsa, mesmo sendo verde, eles devem responder que é vermelha.
Até que chega um aluno atrasado, e a professora faz a pergunta. Espantado, o rapaz se depara com todos alegando que a bolsa verde é vermelha. Até que ele próprio é questionado pela professora, e ele responde que, sim, a bolsa é vermelha.
2. O caso do pedido de licença
A cena trouxe uma recordação dos meus vinte anos. Eu cursava um pré-vestibular na cidade de Conselheiro Lafaiete, em que mais de cem alunos com ambições de cursar o ensino superior se encontravam ali semanalmente para ter aulas de diversas disciplinas.
Certo dia, era aula de história, e saí para ir ao banheiro. Quando retorno e abro a porta da sala, eis que me deparo com todos (inclusive o professor) olhando para mim e morrendo de rir. Na hora, pensei: “será que esqueci de subir as calças??”.
Quando retornei à carteira, as colegas ao lado gargalhavam da minha cara. Perguntei de imediato o que aconteceu, e uma das colegas esclareceu:
“Rafael, o professor tinha interrompido a aula, dizendo que não aguenta mais os alunos mal educados entrando na sala sem pedir licença. Ele falou indignado: ‘aposto que nesse exato momento vai entrar mais um cara-de-pau por essa porta e não vai pedir licença!!’”.
Foi quando o ingênuo aqui entrou pela porta no momento em que todos a observavam, e, contrariando as expectativas gerais, disse “dá licença”, como se estivesse (sem querer) numa cena de stand-up comedy.
3. Comportamentos de massa
O meu caso foi o oposto do aluno de Merlí: eu não disse o que o professor achava que seria dito. Mas nem posso me gabar de ter decifrado um artifício (que nem sabia que fora proposto), ou de ter conscientemente articulado uma contrarresposta.
Eu simplesmente obedeci a um condicionamento, a uma deferência que me foi inculcada como um código de etiqueta que resolvi manter ao longo da vida.
Todos os alunos do cursinho sabiam que o correto numa situação dessas é pedir licença, mas poucos mantiveram esse hábito. Por que as pessoas acabam por abrir mão de uma série de protocolos que constituem parte do nosso pacto de sociedade?
4. Instintos humanos e tecnologia
Uma boa resposta seria consideravelmente complexa, e ambiciosos sociólogos, psicólogos e mesmo cientistas políticos teriam muito a dizer. Como palpiteiro profissional, me atreverei a comentar evocando aqui a noção de instinto.
Como qualquer ser vivo, o ser humano tem suas propensões natas e seus instintos voltados para necessidades básicas, como sobrevivência ou reprodução. Mas existe uma tensão intrínseca da nossa espécie:
Por um lado, dependemos da cooperação mútua em vários níveis: seja para a produção de hormônios como ocitocina no nosso corpo, ou simplesmente pela necessidade de resolver problemas práticos de toda ordem.
Por outro lado, existe uma tentação de tomarmos decisões visando apenas benefícios individuais, entrando em contradição com a questão da coletividade.
O curioso é que, nessa época de um desenvolvimento tecnológico nunca antes experienciado pela humanidade, esperava-se que algumas dessas questões instintivas teriam sido resolvidas.
Entretanto, paradoxalmente nos deparamos com uma verdadeira pandemia de precariedade material, problemas de saúde mental e outras mazelas existenciais.
5. Mais consumidores, menos cidadãos
O fato é que, diante de um capitalismo que molda o comportamento humano para que todos sejam consumidores em vez de cidadãos, as pessoas acreditam que podem pagar (com dinheiro ou com o seu tempo livre) por qualquer serviço.
Inclusive pela tarefa de pensar por si mesmo. Enquanto isso, o córtex pré-frontal (a área do cérebro que toma as decisões e que guia o indivíduo) segue atrofiando…
No modelo de vida burguesa digitalizada do século XXI, nossa rotina está cada vez mais entregue ao automatismo. Na verdade, até desejamos que o automatismo ocorra. Queremos alguém que traga fórmulas mágicas que tirem de nós a responsabilidade pela tomada de decisões.
O mais curioso (ou nem tão curioso assim) é que o mesmo sistema que preparou o contexto para que você queira continuar confortavelmente entorpecido é o sistema que te trará as esperadas fórmulas mágicas.
6. A “contracultura” que a cultura dominante apoia
A extrema-direita é a cristalização ideológica e retórica de todo o mecanismo que molda a matrix da nossa sociedade contemporânea. E esse mecanismo é tão bem engendrado que ele consegue vender a si mesmo não como a matrix em si – mas como a contracultura da matrix.
E não citei o famoso filme estrelado por Keanu Reeves à toa. Pensem que, atualmente, existe toda uma geração de jovens reacionários do sexo masculino definindo a si mesmo como red pill (não importa que as autoras da franquia de filmes Matrix sejam trans), acreditando que eles – e apenas eles – ultrapassaram a ilusão por trás de todas as coisas.
E o que dizer de Olavo de Carvalho, que elaborou para si a persona de um guru contracultural reacionário, com aparência de um líder das trincheiras, mas que, em última análise, defende a manutenção do sistema?
Sim: é muito claro perceber (para qualquer um que acredite que a Terra é redonda, pelo menos) que é papo furado a história de que a extrema-direita vai implodir o capitalismo: ela vai de fato é intensifica-lo.
Por trás da conversa de algo “novo”, na prática o que veremos é um hipercapitalismo operando em modo turbo. Perceba que os grandes ícones desse campo nos EUA (gente como Trump ou Musk) são bilionários.
Que raio de contracultura é essa que brota do topo da cadeia de classes? Uma contracultura que recebe orçamentos milionários por debaixo dos panos, através de grandes institutos ou de startups diversas?
7. Epidemias psíquicas
O mecanismo exato que permite a proliferação dessa turba está bem definido na cena de Merlí citada no início do texto. É o que Carl Jung chamava de contaminação psíquica.
É como se estivéssemos vivendo uma pandemia de informações falsas. Não à toa que, de acordo com Ted Gioia (do canal Honest Broker), a palavra mais pesquisada no Google em 2024 é falso (fake).
Gioia compara o crescimento de fake com a queda nas buscas de uma outra palavra: ação (action). Ele detecta nessa constatação uma tendência mundial de pessoas e grupos dispostos a lucrar com a falsidade, e seu modus operandi busca incentivar o repúdio a objetos inescapáveis da experiência, algo que podemos definir aqui através de palavras simples, como:
– real
– tangível
– único
– autêntico
– manual, artesanal (produzido pela mão humana)
8. Crise da autenticidade
Lendo isso, percebo que o conceito de “aura” prenunciado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica se mostra cada vez mais eloquente.
Imaginávamos que, em uma era de computadores e telas, as pessoas diminuiriam suas visitas ao Louvre para contemplar a Monalisa, mas ocorre o oposto. Museus cada vez mais lotados, com mais e mais pessoas querendo ver de perto a obra real.
Em um primeiro momento, isso parece ser um antídoto da falsidade (e é). Mas o sistema já cooptou a demanda pelo “real”.
Os arautos do falso se valem de inúmeras estratégias para capitalizar a busca pela verdade, e uma delas envolve criar verdades alternativas (eu sei que você pensou no canal Brasil Paralelo aqui).
Ou seja, se a “contracultura” (super entre aspas) da direita não tem poder para tirar a Monalisa do Louvre, eles têm várias outras opções de ação:
podem esvaziar seu aspecto simbólico, relativizar sua importância, afirmar que essa pintura é uma falsificação, que é obra de comunistas, que é mal feita, ou dizer que existia um outro pintor muito melhor que Da Vinci que o mercado da arte renascentista sabotou por maldade.
Em um mundo onde as pessoas vivem cada vez mais no âmbito do instinto, prescindindo de pedir licença ou de dizer “obrigado”, há uma crise sem precedentes da autenticidade, da lealdade, e, sobretudo, do real.
No fundo, as pessoas querem a verdade, e a Monalisa pixelada na tela de um celular é apenas um paliativo. A busca pelo real é o impulso que impele tanta gente, no campo político, a abraçar um Trump ou um Milei.
9. A alegoria do navio
Isso decorre também de um vácuo do campo da esquerda mundial, que abriu mão de defender revoluções e utopias quaisquer. Os progressistas parecem mais preocupados em pactuar, conciliar e administrar o estrago que o neoliberalismo tem deixado no planeta.
A esquerda eleitoral só parece radical dentro do discurso olavista. Na prática, a esquerda se tornou o centro.
Para explicar como o campo da esquerda e o campo da direita atuam nesse mundo pós-pandêmico, tomarei a liberdade de evocar aqui uma alegoria:
Se estivéssemos em um navio à deriva, o campo da esquerda seria representado por um candidato a capitão que quer seguir navegando sem usar qualquer tipo de bússola.
Já o candidato à capitão da extrema-direita tornou-se preferido por boa parte dos entediados marujos, timoneiros e encarregados do andar de baixo, e o motivo é que ele tinha um plano: pegou uma picareta e disse que era uma bússola.
Como apenas um deles tinha uma proposta, a tripulação escolheu seu novo capitão. Finalmente, alguém apareceu com uma proposta concreta! Aliviados, os marujos abriram suas garrafas de aguardente e se recostaram em suas redes.
Enquanto isso, a picareta (que não era bússola) era usada pelo novo capitão para rachar o casco da embarcação e iniciar um naufrágio.
“Mas por que alguém destrói o navio que representa sua única chance de navegação e sobrevivência”, você se pergunta?
Porque o instinto do benefício individual é mais forte em algumas pessoas do que as necessidades coletivas. Um benefício de curto prazo é recompensa suficiente para eles – mesmo que isso signifique a aniquilação geral.
10. De onde virá uma mudança real e oportuna?
O preço que você precisa pagar para uma mudança real e para uma bússola de verdade envolve abrir mão da sua zona de conforto e do seu confortável entorpecimento. Sua Netflix, seu ar condicionado, e as tranquilizantes quatro paredes da sua casa.
Para a esquerda “caviar”, isso implica em ir para as periferias – não apenas botar os pés lá em ano de eleição, mas criar espaços de convivência permanentes com as classes populares. Os líderes da direita já estão na periferia (ainda que por interesse).
E para pessoas do campo da direita e conservadores em geral, a busca pela verdade implica na recusa dos discursos falsos e dos simulacros que são o sustentáculo dos partidos e líderes reacionários em geral. O caminho é se afastar da Faria Lima ou da sua igreja, e se dispor a conversar com pessoas que pensam diferente.
11. As consequências de não mudar
Essa não é uma tarefa fácil, por vários motivos: os instintos nos impelem para a zona de conforto, e o sistema usa isso a seu favor.
Eis o anátema do discurso da extrema-direita: Trump diz que você pode continuar vivendo a sua vida de sempre, e ele fará o serviço sujo para você. Ele sabe que é tudo que você quer ouvir.
O spoiler é óbvio: ele não fará o serviço sujo. Em vez disso, te entregará um vídeo falso feito por IA com resultados que não existem. E você vai acreditar.
Não porque você seja estúpido, mas porque você está desesperado para obter mudança sem abrir mão do seu conforto. Afinal, você foi treinado para ser um consumidor, e não um cidadão.
12. O antídoto
Portanto, se você quer se curar das mentiras, eu diria que o caminho está no incentivo à diversidade.
O princípio da contaminação psíquica pode ser facilmente entendido quando você pensa em uma monocultura alimentar.
Se você planta apenas uma espécie de maçã, trigo, soja, o que for, os bichos e pulgões vão deitar e rolar.
Mas, se em vez de uma lavoura tradicional, você plantar uma agrofloresta – com várias espécies diferentes no mesmo ambiente, simulando a organização de um bosque ou uma floresta –, as pragas não vão proliferar.
Em vez de apoiar os discursos supostamente “antissistemas” veiculados por bilionários, que vão te deixar encarcerado no seu nicho, o ideal é promover espaços que funcionem como ecossistemas humanos de diversidade. Em um mundo que quer criar guetos e separar as pessoas, isso sim é ser realmente antissistema.
Caso contrário, você continuará achando que engoliu a red pill…
…quando tudo que fez foi responder para a professora que a bolsa verde era “vermelha”.