Passatempo ou Produtividade?

A batalha pelo nosso tempo livre

1.

Se dedicar a uma atividade que parece fazer o tempo parar. Você olha para o relógio, e muitas horas transcorreram sem que você se desse conta. Um tempo em que você foi capaz de esquecer até de si mesmo.

Isso já aconteceu na sua vida? É algo frequente, ou é um fenômeno raro? No geral, você é daquelas pessoas que sentem um nó na garganta nos domingos, sabendo que a segunda feira está prestes a chegar? Ou você vive com entusiasmo em todos os dias da semana?

É possível sentir entusiasmo por tudo? Ver cada tarefa da vida como se fosse apenas um passatempo?

2.

Passatempo: substantivo composto, mesclando o verbo “passar” e a palavra “tempo”. Dois radicais que, ao serem combinados, adquirem novo valor semântico.

É uma versão própria para o português do estrangeirismo hobby. Que deriva do termo inglês hobyn (pequeno cavalo, pônei), e resume uma expressão usada na Inglaterra do Século XVI: hobby horse – um cavalo de madeira usado pelas crianças nos momentos de lazer.

3.

O novo texto da newsletter da Vanessa Guedes parte do conto “Sensação de Poder” (de Isaac Asimov) para discutir questões sobre inteligência artificial, perda da curiosidade e cansaço cognitivo. Ao longo do texto, Vanessa aborda a neurose coletiva que nos faz levar a questão da produtividade para nossos momentos de lazer. É um texto abrangente, que busca entender como somos impelidos a quantificar e exibir até mesmo nossos instantes privados, tentando ainda alcançar algum tipo de métrica de desempenho exigida socialmente. Vejam esse trecho:

No conto do Asimov, fazer contas era um passatempo para o homem que (re)ensinou aos outros a calcular. É emblemático usar o termo “passatempo” aqui, parece uma palavra arcaica, quase sem sentido. Quem desfruta tranquilamente de passatempos? Algo assim, sem compromisso nenhum, que não se faça pensando na hora de postar o resultado final? É difícil generalizar o passatempo mais comum das pessoas hoje, não consigo pensar em nada muito elaborado. Games, doomscrolling?

4.

Coincidentemente, eu tinha assistido um vídeo horas antes de ler o texto da Vanessa, e ele tratava de um tema parecido. O autor é um mestre espiritual brasileiro, um professor de ioga chamado Sri Prem Baba.

Ele discutia os benefícios da respiração e da meditação para a cura interior, visando despertar a consciência do indivíduo sobre o sofrimento do próprio corpo. Esse método representa uma jornada de autotransformação que, por trazer perspectivas mais profundas sobre sua própria finitude material, te leva a não querer perder tempo precioso com distrações frívolas do mundo exterior. Destaquei aqui um trecho:

(Com a respiração consciente e a meditação) você deixa de reclamar, de se vitimizar. Você não se distrai mais com os desafios, você os aceita, e entende que são os efeitos especiais da jornada. Mas segue firme no seu propósito de sustentar essa conexão e de seguir vendo Deus em todos, amar a todos, servir a todos.

E quando você estabelece essa unidade com o divino, o próprio fazer no mundo se torna um passatempo (risos). Como a gente gosta de passar o tempo? Eu por exemplo gosto de cantar. (…) A gente dança, canta. Aprecia profundamente o silêncio.

5.

Um amigo montou um canal na internet para transmitir ao vivo a tela de seu videogame. Ele liga o jogo Fifa no seu Playstation 5 no horário marcado, e subitamente milhares de pessoas se conectam para assisti-lo jogar. Mais inusitado do que constatar que existe um público disposto a te ver jogar videogame é perceber que você pode ganhar dinheiro com esse tipo de transmissão.

6.

Quando alguém se dedica a um passatempo, o principal objetivo envolve realmente fazer jus ao significado da expressão: ver o tempo passar rapidamente, escoar – o tal estado de flow que está tão na moda nas redes sociais. Trata-se de uma atualização do termo “estado de fluxo”, cunhado pelo psicólogo húngaro-americano Mihaly Csikszentmihalyi.

Na física quântica, há quem se refira à essa condição como estado de “não-tempo”, que é quando a pessoa nem nota o tempo passar. A teoria da relatividade de Einstein trata justamente de como a sensação de tempo depende do referencial – o mesmo fenômeno que a mecânica quântica apurou no famoso experimento da dupla fenda.

Entretanto, o que notamos de maneira mais presente na nossa sociedade é uma urgência que, ao invés de levar à dissolução do tempo, faz com que as pessoas não vivam suas próprias vidas, fugindo do tédio e, em última análise, de si mesmas.

https://youtu.be/kwxyT5n6E9o):

Vejam essa citação da psicóloga Maria Rita Kehl (retirada de uma palestra dada ao Café Filosófico chamada Aceleração e Depressão):

(…) Tem uma frase de um paciente que usei como epígrafe (em um) livro. Ele diz assim: “nossa, eu percebo que eu vivo assim: vamos andar logo com isso, para acabar logo, para ir pra casa logo, para dormir logo, para acordar logo, para começar a trabalhar logo, para ir dormir logo, para viver logo, para morrer logo”.

Maria Rita prossegue analisando que, obviamente, você vai morrer na idade que tiver que morrer, mas que a sensação de morrer logo resume, na verdade, o anseio de correr achando que se vai chegar em algum lugar. Quando o resultado disso, desse correr intermitente, é apenas chegar na morte mais depressa – ou com a sensação de não ter apreciado cada momento da vida.

7.

A visão de “passatempo” proposta pelas tradições orientais (como o ioga, o taoísmo, o budismo e outras) não envolve a fuga do tédio, mas a aceitação do tédio. Abraçar a vida de maneira irrestrita. Se uma pessoa se torna capaz de amar profundamente a si mesma, de se perdoar e se aceitar em profundidade, ela será capaz também de desfrutar de cada instante nessa vida, nesse planeta.

O paradoxo aqui é que, se você aceita cada instante com genuíno amor, a sensação de continuidade linear do tempo se dilui. Ao manter sua consciência plenamente presente, no “agora”, a impressão é a de que se interrompe a contagem do tempo.

Como quando o mestre espiritual indiano Sadguru relatou que, ao alcançar o estado de samadhi (iluminação), aos 25 anos de idade, ele se sentou sob uma árvore acreditando que tinham se passado algumas horas; entretanto, as pessoas que o observavam relataram ter se passado treze dias desde que o jovem iniciou sua meditação naquele mesmo local.

8.

A dedicação que um monge ou um buscador espiritual dedicam ao estado de samadhi pode parecer muito distante do que podemos vivenciar em nossos estilos de vida no Ocidente. Mas cada vez mais cresce no mundo contemporâneo o interesse pelas práticas de mindfulness, que seriam adaptações secularizadas voltadas para contextos médicos e psicológicos. Trata-se de uma prática baseada em evidências, que se encaixa tanto para ambientes laicos e ateus quanto devocionais e espiritualizados.

9.

Existem várias maneiras de passar o tempo. Na internet, chama-se de timeline aquela tela inicial das redes sociais onde as postagens quase infinitas se desenrolam para o internauta.

Temos a responsabilidade de dizer se vamos delegar a passagem da nossa linha do tempo à algoritmos e curadores externos. Ou se preferimos encarar a responsabilidade por nossas próprias decisões e o uso do nosso tempo.

Agradeço a leitura dessa edição de Além da Letra – Rafael Senra! Se puder, deixe um like (coraçãozinho), ou recomende para um amigo. Abraço e tudo de bom!