A Contradição de Perfect Days

Um novo clássico de Wim Wenders, ou apenas um movimento em falso?

A cada novo filme lançado no século XXI, críticos e espectadores de cinema constatavam cada vez mais que a fase de ouro do diretor alemão Wim Wenders havia ficado no passado. Ainda que diversos documentários recentes de sua lavra tenham sido elogiados (com razão, a meu ver), algumas novas obras de ficção eram recebidas com frieza. Esse jejum de entusiasmo foi enfim quebrado em 2023, quando Perfect Days (Dias Perfeitos) foi saudado como o retorno de Wenders ao patamar de excelência que todos esperavam. Creio que não encontrei uma resenha negativa desde que ouvi falar do filme pela primeira vez.

Perdoem o trocadilho, mas eu esperava por um dia perfeito para assistir ao filme, e o motivo é que sempre elenquei publicamente a figura de Wim Wenders como meu cineasta preferido. Na verdade, nunca busquei atualizar esse pódio imaginário da sétima arte, e talvez eu tenha mais filmes preferidos na filmografia de um François Truffaut ou Woody Allen do que na irregular lista de obras feitas por Wenders. A eleição do diretor como preferido provavelmente veio do impacto de assistir Paris, Texas na adolescência: provavelmente foi a primeira vez que tomei consciência do que era um filme de arte, através da verdadeira epifania de vislumbrar a saga do pitoresco Travis Henderson e seu filho pelas paisagens solitárias do sudoeste dos Estados Unidos.

Ao longo de mais de cinquenta anos de carreira, a longa filmografia do diretor se manteve bem consistente em uma vertente específica do gênero cinematográfico: os documentários. Foram muitas obras primas ao longo dos anos, como Tokyo GA, A Trick of Light, Buena Vista Social Club, The Soul of a Man, Pina, ou The Salt of the Earth (que retrata o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado). Em relação à filmes de ficção, podemos dividir por períodos: obras mais existenciais e sombrias nos anos 1970, filmes primorosos nos 80, e obras razoavelmente desiguais nos anos 90. A partir do século XXI, a melhor definição da produção ficcional de Wenders vem do título de um de seus primeiros filmes: Wrong Move (que saiu no Brasil como Movimento em Falso, tradução que também se adequa ao meu trocadilho aqui). Nesse sentido, a depreender do que tanta gente tem falado, Perfect Days parece significar um retorno de Wenders a seus dias mais inspirados.

Quanto a mim, apesar de gostar do filme (e achar que é a melhor obra ficcional do diretor em muito, muito tempo), tive meus senões. Assim, em vez de engrossar o coro das resenhas entusiasmadas, resolvi dedicar esse texto a tratar de algumas questões delicadas.

A primeira cena do filme parece resumir uma impressão geral que marca meu incômodo com a obra. É quando somos apresentados ao protagonista Hirayama, no momento em que ele acorda ainda cedo para ir trabalhar. O primeiro take consiste de um zoom (na verdade, um “dolly in”, que é o movimento de câmera através de trilhos, aprofundando a perspectiva) no rosto do personagem. Aquilo me causou uma impressão suspeita, que permaneceria ao longo do filme.

Qual impressão? A de que Wenders demonstra uma segurança técnica que parece se contrapor à singeleza da história. É como se o resultado fosse maior do que o conteúdo narrado. Veja, por exemplo, as cenas em que Hirayama ouve suas fitas cassete no furgão. O som é aberto para o espectador em estéreo, e o que escutamos ao assistir tais cenas pode soar como qualquer coisa – menos como uma fita cassete. Se parece mais com aquilo que ouvimos ao dar play no Spotify (por sinal, o serviço de streaming rende uma boa piada na cena de Hirayama com sua sobrinha).

A textura digital do filme foi outro ponto incômodo, sobretudo quando percebemos que o personagem vive alheio a qualquer tipo de modernidade, detido em sua máquina fotográfica analógica, seus livros antigos e suas já citadas fitas cassete. Apesar disso, a filmagem e a edição de Perfect Days parecem alinhadas com o que há de mais moderno no mundo digital. Nesse sentido, Wenders se apropria do fetiche analógico, sem que o resultado demonstrado traga para o espectador qualquer sabor da experiência analógica real. É semelhante aos livros lidos por Hirayama, que nos apresentam os nomes de autores como William Falkner e Patrícia Highsmith, mas nenhum verso ou trecho das obras literárias em si.

Qualquer admirador de Wenders sabe que ele foi profundamente influenciado pelo diretor japonês Yasujiro Ozu (na verdade, o documentário Tokyo GA, dirigido por Wenders, talvez tenha sido o responsável por fomentar um hype – ainda crescente – em torno de Ozu). Entretanto, as singelas películas dirigidas pelo japonês demonstram um característico minimalismo formal, como o uso de um único tipo de lente (50 mm) ou a repetição implacável do mesmo ângulo de visão (as famigeradas “tomadas de tatame”, feitas no nível dos olhos de uma pessoa ajoelhada ou de uma criança). Esses recursos propositalmente limitados de Ozu me remetem ao estilo gráfico do Ukiyo-e, com linhas claras, tons pastéis, e um uso estratégico dos espaços vazios na tela.

Quanto a Wenders, apesar de fazer um filme com tema contemplativo e ambientá-lo no Japão, sua filmagem é tipicamente ocidental e moderna, com muitas cenas fragmentadas, cortes rápidos e toda a gramática visual própria do cinema contemporâneo. Isso me trouxe uma sensação geral de descompasso, e, em diversos momentos, parecia que o diretor estava fazendo um pastiche de si mesmo. Como se ele quisesse resgatar características de seu melhor cinema no passado, porém atualizando-as para o padrão desse novo século.

Enfim, apesar da minha resenha parecer pessimista, devo dizer que gostei do filme, que considerei ser bem intencionado, com uma história cativante e cheia de bons momentos. Além do mais, Wim Wenders é sempre brilhante quando enquadra os espaços urbanos, evitando as óbvias paisagens “instagramáveis”, e sendo capaz de enxergar uma beleza prosaica nos lugares representados em seus filmes.

Contudo, mesmo com um saldo geral positivo, não consegui deixar de pensar que é uma obra muito autoconsciente de suas próprias intenções. Se a excelência técnica do atual cinema de Wenders parece muito adequada para seus documentários, a leveza e a singeleza sugeridas pelos enredos de seus filmes de ficção parecem entrar em contradição com o virtuosismo das suas produções modernas.

No fim das contas, penso que Perfect Days merece ser celebrado, mas está longe de trazer aquilo que o cinema de Wim Wenders tem de melhor.

Obrigado por ler este ensaio! Convido você a assinar gratuitamente minha conta no Substack e apoiar meu trabalho!