Ideias mais ou menos encadeadas e uma história pessoal
Meados de 2001; uma das primeiras vezes em que eu entrava num estúdio de gravação musical. Sala lotada, muita gente conversando coisas técnicas sobre microfones, afinação do violão, ruído do sinal, blablabla. Até que alguém diz “ele morreu!”. Subitamente, todos se esquecem do que estavam a fazer, tomados (no mínimo) pela curiosidade com a identidade do dito cujo que partiu dessa para a melhor. Nem um relâmpago teria gerado efeito parecido.
O mais engraçado é que, hoje em dia, nem lembro do nome do falecido. Só me recordo do efeito que a palavra “morte” causou entre as pessoas ali presentes.
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Nós, humanos, não trazemos de fábrica dispositivos internos que nos permitam lidar com a morte de um modo ameno ou pacífico. Por isso, inventamos dispositivos externos físicos e simbólicos: rituais fúnebres, simpatias, unguentos, cemitérios.
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A morte de um ente querido é sempre um vendaval no íntimo. Conversando esses dias com o amigo Kadu Mauad, ele disse que, de acordo com alguns neurocientistas, nossa psique interpreta um parente ou um amigo próximo como se fossem espaços de segurança. Mais do que pessoas queridas, são esteios da nossa própria vida.
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Quando alguém próximo morre, nós morremos junto – no sentido que precisamos renascer em nossos hábitos e nossas percepções de mundo. Nada será como antes, hoje ou amanhã. O luto não é apenas pelo ente que partiu, mas pelo modelo de vida que perdemos para sempre.
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A consciência da morte não é privilégio apenas de seres humanos. Elefantes, por exemplo, tem o hábito de inspecionar corpos de membros falecidos, carregá-los ou cobri-los com galhos e terra – no que parece ser um tipo de luto. Há registros de primatas que carregam os corpos de seus filhotes mortos por dias ou semanas, como se tivessem dificuldade em aceitar a perda, e comportamentos semelhantes já foram detectados entre baleias e golfinhos. Além disso, é comum ouvir histórias de cachorros que param de se alimentar diante da ausência do dono, ou gatos que fogem de casa após notar que seu tutor não se encontra mais naquele local. É difícil saber se tudo isso significa uma mera reação pela ausência física de alguém, ou se são realmente manifestações de luto no reino animal.
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Humanos têm a faculdade da memória como uma simultânea bênção e maldição. Por mais que o sistema queira vender seus cursos de leitura dinâmica ou memorização sofisticada, sabemos que, muitas vezes, o grande alívio está em se esquecer das coisas.
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Dizem que uma das coisas mais duras sobre envelhecer é acompanhar o falecimento de pessoas do seu entorno. Dói ainda mais quando você perde alguém que esteve por perto durante toda a sua vida. Porque a presença daquela pessoa era sinônimo da vida mesma.
Desde seus primeiros anos, você aprendeu que a cor do céu durante o dia é azul, que o sol está sempre a brilhar, que precisamos beber água, e que aquela pessoa do seu lado é uma pessoa de carne e osso. Perder um ente querido que você conhece por toda a vida é como ver o sol se apagar. Parece uma traição da natureza.
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Minha prima Renata está agora em outro plano de existência. Tentar encontrar uma síntese para esse tipo de perda é tarefa árdua. O sentimento é o de ver seus braços e pernas amarrados em lugares diferentes, e você tenta exercer sozinho uma força centrípeta forçando cada vetor para o centro, buscando de maneira forçada um equilíbrio que parece irrecuperável.
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Tenho tantas memórias da Renata que seria possível escrever um livro. Não seria uma biografia dela, mas sim um relato afetivo de alguém com quem você teve a honra e a alegria de conviver.
É como observar pela janela. Você não tem a paisagem completa, só um índice dela. Contudo, apesar de ser um recorte de algo maior, o que você vê já é um mundo.
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Em um dia do século passado, quando éramos adolescentes, o amigo Filipe Jiló ligou para a casa dos meus pais e me convidou para testar sua mais nova aquisição: um telescópio. Naquele dia ensolarado, enxergar estrelas estava obviamente fora de cogitação. Mas os jovens são ansiosos, e, na falta dos astros celestes, fomos observar a cidade de Congonhas.
Subimos para a Praça Bandeirantes, e de lá chegamos no Cruzeiro, que é uma espécie de mirante dentro da cidade, de onde se abre uma vista majestosa de Congonhas. De lá, apontamos o telescópio para casas, avenidas, e era vibrante poder enxergar detalhes tão minuciosos assim de longe, bancando os voyeurs de nossos conterrâneos.
Dali, caminhamos para um outro ponto ainda geograficamente elevado: a Igreja Bom Jesus de Matosinhos, o grande cartão postal de nossa cidade natal, onde está um dos mais significativos acervos de Aleijadinho, com as estátuas dos doze profetas, o adro e seu conjunto arquitetônico barroco. Eu e Filipe nos sentamos no platô de uma das capelas, logo abaixo da Igreja.
Até que avistei a parte de trás da casa da Renata, localizada a quilômetros de distância. Tive a ideia de ligar para ela do meu nokia 3210 (um modelo ancestral de telefone celular que, em vez de câmeras e aplicativos, apenas ligava e enviava SMS de texto – com taxas absurdas). Quando minha prima atendeu, eu disse: “Rê, vou te pedir uma coisa muito louca. Se você puder, vá para a janela da parte de trás da sua casa, a janela do quarto dos seus pais”.
Lembro vividamente da emoção de avistar na lente do telescópio o momento em que Renata apareceu na janela do segundo andar. Hoje em dia, acostumados que estamos com videochamadas e reuniões remotas, é difícil traduzir o encanto de ligar para alguém de longe e poder obter uma imagem da pessoa no meio da conversa.
Então, me sentindo um mágico como o Mister M, eu disse: “você está com uma blusa branca, não está?”. Ela arregalou os olhos, e disse “como você sabe??”. “É que eu estou na basílica, com um telescópio”, respondi. Atônita, ela caiu na gargalhada. Ela então fez alguns sinais com as mãos, e sorriu quando me ouviu adivinhar cada um deles.
No meu arquivo afetivo de lembranças relacionadas à Renata, essa é uma das que considero mais singelas e poéticas.
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Um mundo de telefones que apenas faziam ligações, de internet discada, um mundo de presenças. As angústias e alegrias eram outras. Esse é um mundo que morreu. É curioso como somos capazes de viver muitas vidas em uma única vida.
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O século XXI tem tecnologias sofisticadas, mas os telefones hiperconectados de agora não permitem que eu ligue para minha prima. Não há telescópio que me permita vê-la novamente.
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Muito antes dos telefones, dos telescópios, bússolas, astrolábios, e antes que inventássemos a roda, nós possuíamos dispositivos natos: Memória. Coração.
Muitas tecnologias morreram e renasceram ao longo dos séculos. Algumas surgiram da paixão de artesões e alquimistas. Outras precisaram receber subsídio do governo norte-americano. Mas a memória e o coração nunca deixaram de ser nossos aparelhos mais sofisticados.