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No capitalismo, o copo nunca está cheio

O desejo de superar a própria finitude nos trouxe a um sistema desastroso.

Querer superar os próprios limites é algo próprio do ser humano? Nem preciso citar aqui inúmeros filósofos ou pensadores para provar que, sim, estamos sempre buscando maneiras de ir além de nós mesmos. Contudo, esse desejo de superar a própria finitude precisa ser devidamente analisado – afinal, como dizia Carl Jung, os fenômenos da vida possuem uma dualidade inerente, onde nada é totalmente bom ou ruim, mas ambos em paralelo. E você provavelmente vai concordar comigo que essa atitude de ir além dos próprios limites pode facilmente se converter em uma neurose perigosa.

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A premissa que quero defender aqui é que essa atitude esquizofrênica ou prepotente de ignorar limitações de maneira inconsequente é, basicamente, a maneira como o capitalismo funciona. Nós, humanos, poderíamos ter criado um sistema baseado no lado mais rico e interessante de querer superar nossas limitações: um sistema lúdico, criativo, e também cooperativo. Mas nosso sistema se baseou no polo negativo desse aspecto.

E fazemos de tudo para evitar pensar sobre os problemas do capitalismo, sobre o fato de nós, enquanto sociedade, termos escolhido viver sob um sistema perverso. Será que escolhemos mesmo? A maioria de nós, quero dizer. A culpa dessa falta de reflexão não é nossa. Aqueles que realmente dão as cartas (chame-os de “burguesia”, “elite”, “donos dos meios de produção”, o que for) fazem de tudo para nos manter distraídos. Eles acreditam que pensar de menos é sinônimo de consumir mais.

Nesse sentido, a melhor maneira de identificar um defensor do capitalismo é pela recusa taxativa em analisar os meandros do sistema. Vão te dizer que as coisas são assim mesmo, e pronto. Para que discutir de onde vem o azul do céu? É azul e pronto. Da mesma forma, o capitalismo é o regime econômico no qual vivemos, e nada mais importa. Por que você está repetindo que o capitalismo tem apenas 260 anos (contando a partir da invenção da máquina a vapor por James Watt em 1765, ou seja, o início da Revolução Industrial)? Isso não importa, dizem eles, é um dado insignificante.

Bem, o capitalismo não nasceu com a humanidade. Dizemos que algo é “natural” ou é “nato” quando sempre existiu, mas, mesmo quando se trata da natureza, nós pensamos sim sobre ela (e todo o campo das ciências biológicas ou naturais trata exatamente disso). Nem sempre fomos regidos pelo capital. Com muita boa vontade, podemos dizer que o capitalismo teria cerca de 600 anos (e quem diz isso é Marx, ao situar a transição da Idade Média para a Idade Moderna no século XIV como o “marco zero” de um sistema mercantilista ainda vigente). Mesmo que seu lastro temporal seja de seis séculos, ainda assim isso não torna o capitalismo imune a críticas e análises.

Se quisermos ser criteriosos na tarefa de refletir sobre um objeto qualquer, precisamos de uma metodologia, e temos tantos métodos quanto áreas diferentes de estudo para utilizar. O capitalismo é quase sempre estudado no âmbito econômico, e aqui poderíamos citar inúmeras teorias e teóricos dedicados ao tema. Karl Marx afirmava que o capitalismo se caracteriza pela acumulação de capital (“dinheiro”) por parte dos proprietários dos meios de produção (os “patrões”), e depende da extração de mais-valia (“lucro”) do trabalho dos proletários (“trabalhadores”).

Mesmo dentro do campo econômico, temos outras perspectivas, como a de Friedrich Hayek (que pensa no capitalismo como um sistema espontâneo e descentralizado de preços e informações) ou Joseph Schumpeter (que vai falar de um sistema caracterizado por rupturas, cujas transformações implicam ora em progresso ou ora em crise), para citar apenas duas. Há também as célebres interpretações sociológicas, com a de Max Weber (relacionando a ética protestante com o capitalismo) ou a de Pierre Bourdieu (que assinala as diferentes “faces” do capital, econômicas, culturais, simbólicas, sociais, todas geradas para reproduzir desigualdades).

Poderia citar aqui várias outras interpretações, sejam elas históricas (como a de Fernand Braudel ao falar dos “ciclos”), filosóficas (a alienação assinalada por Marcuse, por exemplo), e outras. Mas quero destacar aqui uma perspectiva filosófica em especial, defendida pelo filósofo Friedrich Nietzsche, algo que, a princípio, parece tratar apenas de nuances da alma humana. Só que, vistas em profundidade, essas ideias explicam também a existência do capitalismo de maneira exemplar.

Em obras como Assim Falava Zaratustra, Nietzsche propõe que “o homem é algo que deve ser superado”, ou seja, o ser humano está em constante transformação, sempre desejando ir além de suas limitações. Ele propõe o conceito do Übermensch (além-do-homem), que é uma forma de transcendência, onde o desejo humano de superar sua condição se realiza.

Esse tema da eterna insatisfação humana retorna em várias das principais obras do filósofo alemão. Em A Gaia Ciência, Nietzsche apresenta um dos seus conceitos mais famosos: o do eterno retorno, em que a existência pode ser vista como um ciclo infinito, e cabe ao ser humano afirmar a vida com todos os seus desafios, projetando sentido em sua finitude. E que sentido seria esse? Em Humano, Demasiado Humano, o filósofo questiona se, por trás de toda busca, não estaria o desejo por eternidade — não uma eternidade literal, mas uma eternidade de significado e impacto.

Portanto, para Nietzsche, os desejos do ser humano ultrapassam seus próprios limites e sua condição intrínseca de finitude. Esse foi o tema da palestra “Entre o céu e o inferno: atualizando interpretações”, ministrada recentemente no ICL pelo teólogo Leonardo Boff. Diz Boff:

“O ser humano é um ser de desejo e esse desejo não tem limites. Já dizia Aristóteles ou Freud que queremos isso, aquilo, queremos crescer, ter uma casa, um carro, casar… e nunca se está satisfeito.

O ser humano é um eterno protestante, quer empurrar os limites para frente. (…) E o nosso desejo, de acordo com Nietzsche, é querer a imortalidade humana. (…) Somos um ser de desejos, um projeto infinito. (Mas) só encontramos (coisas) finitas, como uma casa, um carro, uma esposa querida, um marido bom, os filhos bem educados. (…) (Entretanto) queremos mais, não estamos nunca saciados”.

https://instagram.com/p/DEU2dGCuSDU/

Para Nietzsche, o desejo humano não configura apenas uma função psicológica ou emocional, mas uma manifestação de forças instintivas que orientam a vida. Nesse caso, o desejo estaria contido no que ele chama de “vontade de poder” (wille zur macht). Como define na sua obra Além do Bem e do Mal, “onde encontrei o vivo, aí encontrei a vontade de poder.” O desejo, nesse caso, é mais profundo do que as simples necessidades biológicas: é um instinto de criação e transcendência.

Nesse sentido, retornamos ao tema do capitalismo como sendo (dentro da perspectiva nietzschiana) a cristalização de uma demanda interior do próprio ser humano. Em tese, existem várias maneiras positivas de superar a condição intrínseca de finitude – como, por exemplo, escrever um livro ou produzir uma obra de arte. São feitos capazes de deixar um legado duradouro e inspirador para gerações vindouras. Fazer boas ações ou ajudar o próximo também podem ser consideradas maneiras de promover um efeito para além de si mesmo, através de acontecimentos construtivos para outras pessoas.

Mas e quando pensamos na face inconsequente do capitalismo, que reproduz suas práticas como se o planeta fosse realmente infinito? Citarei aqui um único exemplo (dentre tantos possíveis) para ser mais preciso sobre o que quero dizer: apenas pense que, se todas as cidades do mundo gastassem tanta energia elétrica quanto Las Vegas (EUA), precisaríamos de seis planetas, tamanha a quantidade de recursos envolvidos na manutenção daquela estrutura gigante de luzes e máquinas. Entretanto, os Faria-Limers continuam acreditando que o padrão de vida norte-americano é algo replicável para todos os países do mundo.

Nesse sentido, a visão do capitalismo como propagada por pensadores contemporâneos como Ailton Krenak é muito mais razoável sobre os efeitos nefastos desse sistema. Para ele, a atitude capitalista de crescer inconsequentemente é um verdadeiro “pensamento mágico”, que busca uma justificativa em si mesmo, e por isso é mágico: faz promessas que não podem ser cumpridas à longo prazo. Para Krenak, o ser humano capitalista é “uma praga do planeta, uma espécie de ameba gigante”. O “clube seleto da humanidade” composto pela elite mundial “vem devastando tudo ao seu redor”, diz o pensador indígena, de modo que se perde a noção do Planeta Terra como um organismo vivo. E arremata: “temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver”.

Outro importante pensador indígena (constantemente citado por Krenak) é Davi Kopenawa, que vislumbra o atual estágio do capitalismo como uma verdadeira “queda do céu”. Nesse sentido, se todo fenômeno apresenta uma dimensão boa e ruim em paralelo, precisamos pensar que a necessidade humana de buscar superar sua finitude precisa ser relativizada.

Mesmo que a humanidade tivesse sido capitalista desde a era das cavernas (ao ponto de podermos dizer que esse é um sistema “universal” ou “nato”), ainda assim ele mereceria ser foco da nossa reflexão e questionamento. Querer viver além dos próprios limites não é algo indigno por si só – a diferença está em como isso será feito. Não é justo que uns paguem pela satisfação dos desejos dos outros. A vontade de poder deve ser exercida para o bem comum. O discurso de pensadores contemporâneos como Leonardo Boff, Ailton Krenak ou Davi Kopenawa nos coloca essa reflexão inescapável, sobre como podemos ser responsáveis com nosso desejo de ir além do que está posto.

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Uma conversa entre páginas e telas

O que caracteriza um bom filme e uma boa história em quadrinhos? Quais filmes renderiam boas HQs, e vice-versa?

A TV é movida a emoção, enquanto quadrinhos são movidos a elaboração conceitual. Isso não quer dizer que a TV não possa ter conceitos legais ou que os quadrinhos não possam ter emoção. Mas é mais fácil alcançar emoção na TV porque você tem atores e trilha sonora, enquanto é mais fácil mostrar um conceito maneiro nos quadrinhos, já que quem lê controla o tempo enquanto lê. Assim, a pessoa pode parar e refletir sobre cada ideia que se apresenta, de um jeito que não dá em um programa de TV.

Eu peguei essa citação do roteirista Pornsak Pinchetshote diretamente da edição de semana passada da newsletter Virapágina, do tradutor e pesquisador Érico Assis, que trouxe uma reflexão muito interessante sobre as diferenças entre cinema (ou televisão) e quadrinhos.

Você provavelmente se lembra de ocasiões em que estava no cinema (ou assistindo a um filme em casa, com amigos) e, ao olhar para o lado, se deparou com pessoas rindo alto ou chorando. Mas quantas vezes você viu alguém reagindo da mesma forma enquanto lia uma história em quadrinhos? Ainda que, como Pornsak diz, possam existir exceções entre espectadores e leitores, o tipo de padrão que ele menciona faz todo o sentido.

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Para contribuir com esse debate, me peguei pensando se não existiriam alguns filmes que, por sua natureza conceitual ou metaficcional, renderiam bons quadrinhos – ou o contrário: quadrinhos que, por seu potencial de emocionar e tocar corações, poderiam se tornar filmes muito especiais. A partir dessa premissa, fiz aqui uma singela lista de obras com alto potencial “adaptável”.

Começando pelo cinema que renderia boa HQ: penso de cara em Waking Life (2001), de Richard Linklater. Nesse caso, não temos nem dificuldade de imaginar o tipo de traço que o desenhista poderia adotar. Afinal, o filme é todo feito na técnica de rotoscopia – onde são feitos desenhos em cima de filmagens, quadro a quadro. O resultado é um tipo de animação realista; e parece, na verdade, com um quadrinho em movimento. Como se não bastasse, além desse aspecto visual, Waking Life tem um roteiro repleto de discussões existenciais e filosóficas, que as vezes te fazem querer pausar cada cena para ficar pensando a respeito – algo que seria mais natural e fluido se fosse apresentado no formato de uma graphic novel.

Por sua vez, as HQs do japonês Jiro Taniguchi renderiam filmes muito tocantes. Se você assistiu Dias Perfeitos (2023), do alemão Wim Wenders, pense que aquele tipo de narrativa e de estética se assemelha bastante com o estilo de Taniguchi nos quadrinhos – não seria exagero pensar que Wenders leu O Homem que Passeia (1990) antes de produzir seu filme. As duas obras se valem da fotografia panorâmica de bairros da classe trabalhadora japonesa, representações do cotidiano pelo olhar de um protagonista flaneur, e uma dose considerável daquilo que chamam de slice of life – que é quando uma narrativa se detém em pequenos detalhes da vida comum.

Outro filme que renderia uma boa HQ é Ponto de Mutação (1990), baseado no livro de mesmo nome de Fritjop Capra. Na obra, três personagens – um político, um poeta e uma cientista – passam uma tarde caminhando por um antigo castelo em Mont Saint Michel, no litoral da França. O trio discute temas variados, como a teoria da relatividade de Einstein, o cartesianismo, ecologia, física quântica, espiritualidade, etc. Cada um deles argumenta a partir de sua específica área de atuação, resultando em uma conversa profunda e inspiradora. Apesar do baixo orçamento, o filme ficou conhecido sobretudo por seu roteiro instigante; mas não podemos deixar que, na mão de um bom autor de quadrinhos, a história poderia realmente mexer com as cabeças dos leitores.

Para encerrar esse exercício de imaginação intermidiática, apresento a HQ que é minha candidata favorita a uma possível adaptação para o cinema: Regresso ao Éden, publicada no Brasil pela Devir em 2022. Escrita e desenhada pelo espanhol Paco Roca, essa obra foi eleita por vários críticos como sendo o melhor quadrinho de 2020. Não li tantos quadrinhos publicados no mesmo ano para poder comparar, mas talvez tenha sido a leitura de HQ mais emocionante que já fiz (na verdade, antes de ler Regresso ao Éden, eu nunca tinha chorado lendo um quadrinho).

Nessa obra, Roca apresenta duas narrativas em paralelo: uma pessoal (a história da sua mãe) e outra coletiva (o contexto da ditadura franquista na primeira metade do século XX). Seja pelo tema sensível, aliado a um senso histórico notável e um manejo de mestre com as possibilidades gráficas e narrativas dos quadrinhos, o resultado acabou por render uma verdadeira obra prima. Assim, fico pensando que, se essa graphic novel for adaptada decentemente para o cinema – com um bom elenco, uma boa trilha sonora, e uma direção adequada –, certamente estaríamos diante de um filme inesquecível e atemporal.

E quais outras obras vocês acham que poderiam render boas transposições de uma mídia para outra? Fiquem à vontade para compartilhar suas opiniões.

Aproveito também para agradecer as leituras e o apoio de vocês ao longo de 2024. Foi uma enorme alegria poder trocar ideias e experiências com tantas pessoas através dessa newsletter. Um forte abraço e boas festas para todos!

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Phil Collins, o baterista

Documentário registra o auge e a decadência de um dos músicos mais amados do pop

O Drumeo é uma plataforma online especializada em cursos e serviços sobre bateria (o instrumento musical de percussão, para ser mais exato), e consiste em uma verdadeira comunidade global de apoio para alunos e professores. Em seu canal do You Tube, eles têm investido na produção de conteúdo sobre bateria, com vídeos informativos, entrevistas, e até mesmo documentários.

No dia 18 de dezembro de 2024, o Drumeo lançou sua produção talvez mais ambiciosa – um documentário chamado Phil Collins: Drummer First. O título é autoexplicativo, ou seja, diante da vasta carreira do músico e compositor inglês Phil Collins, o filme traz ênfase para sua notável contribuição no mundo da bateria. Somando duas horas de conteúdo, a obra conta com o filho de Phil, Nic Collins, como um dos produtores.

Fique a vontade para dar um “like” ou compartilhar esse texto, e eu te agradeço por isso.

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Apesar de iniciar uma carreira promissora como ator teatral em meados dos anos 1960, o jovem Phil Collins decidiu na época que seu futuro artístico era nos bancos de uma bateria. Depois de passar por grupos semi-amadores como Flaming Youth, em 1970 ele ingressa como baterista da banda britânica Genesis. Após a saída do vocalista Peter Gabriel, em 1975, Collins torna-se vocalista do Genesis. Em 1981, lança seu primeiro disco solo, Face Value, e a partir dali vai se tornando cada vez mais onipresente nas rádios do mundo todo. E não é exagero dizer que Phil ajudou a inventar o som de bateria característico dos anos 80.

Mesmo com tantas glórias, problemas pessoais ou de saúde impediram Collins de ter o mesmo nível de produção de nomes como Paul McCartney ou Bruce Springsteen. Phil já vinha reduzindo seu ritmo ao longo do século XXI (seu último material inédito é o disco Testify, de 2002), e acabou por anunciar sua aposentadoria em 2022. Entretanto, seus discos e performances continuam a ser celebrados por várias gerações de ouvintes.

A questão é que todas as conquistas de Collins enquanto artista solo e vocalista do Genesis acabaram por eclipsar sua enorme contribuição enquanto baterista. Para além dos trabalhos que lhe deram fama, Phil produziu e tocou em ótimos discos de diversos artistas. Em paralelo ao Genesis, por exemplo, o músico inglês foi o baterista de um excelente grupo de jazz fusion chamado Brand X – e seus arranjos de bateria em discos como Unorthodox Behaviour (1976) são fora de série. Além disso, Phil já tocou em álbuns de Eric Clapton, Peter Gabriel, Robert Plant, Peter Banks e uma lista enorme de outros nomes (incluindo uma performance com o Led Zeppelin, essa infelizmente memorável pelos piores motivos).

Um dos aspectos mais legais do documentário da Drumeo é o de incluir apenas as trilhas isoladas de bateria das músicas citadas (interpretadas pelo filho de Phil, Nic). Isso não apenas destaca o notável arranjo de Collins nessas canções, mas também mostra o quão reconhecíveis são essas levadas e viradas. Rapidamente sabemos de quais músicas se tratam, ainda que todos os elementos melódicos tenham sido suprimidos.

Em paralelo a essas trilhas de bateria, ouvimos depoimentos emocionados de mestres do instrumento como Chad Smith (Red Hot Chili Peppers), Mike Portnoy (Dream Theater), Billy Cobham (Mahavishnu Orchestra), dentre outros. Diversos convidados se dedicam a comentar a qualidade dos arranjos e grooves de Collins, incluindo suas viradas antológicas “cantaroláveis” (detalhe: “virada” de bateria, em inglês, traduz-se como fill, o que rende trocadilhos hilários no fim do filme). Apenas pense que uma das viradas mais famosas do pop foi gravada (de improviso!) por Phil em In The Air Tonight!

Faça um teste, e ouça “Here We’ll Stay”, single gravado por Frida Lyngstad – uma das eternas cantoras do ABBA. A canção fez muito sucesso quando saiu, em 1982, mas é pouco lembrada hoje em dia. Pois bem, ouça apenas a sua introdução, e repare nos arranjos de bateria. Como disse um dos comentaristas de Drummer First, a assinatura sonora do timbre e da levada faz com que possamos reconhecer já nos primeiros minutos dessa música que o baterista é Phil Collins (que foi também o produtor do terceiro disco de Frida, Something’s Going On).

O documentário não chega a ser propriamente biográfico, apesar de vasculhar várias fases da vida de Collins, mas cumpre o seu propósito, que é tentar fazer justiça à sua faceta de baterista. Como sua carreira solo obteve um sucesso gigantesco, sua contribuição para o instrumento não é tão valorizada. Na verdade, é difícil pensar que aquele rapaz baixinho e careca cantando baladas açucaradas como Against All Odds ou One More Night foi um dos grandes bateristas da história do rock.

Apesar da importância por trás do filme da Drumeo, dois problemas me incomodaram um pouco quando assisti. O primeiro deles envolve a absurda ausência de Chester Thompson – que dividiu as baterias do Genesis com Phil nas performances ao vivo entre 1977 e 2007. Além disso, Chester tocou em quase todas as turnês de Phil em carreira solo. Foi na última turnê solo de Phil (Not Dead Yet Tour: 2017 a 2019) e na última turnê do Genesis (The Last Domino: 2020 a 2022) que Nic Collins substituiu o antigo baterista.

Em uma entrevista de fevereiro de 2021 publicada pela Revista Rolling Stone, Thompson revelou que ele e Collins tiveram desavenças na turnê Going Back, de 2010. Chester acreditou que, por se tratar de um repertório baseado em covers do catálogo da gravadora Motown, saberia tudo de cor. O que ele não contava é que Collins fez diversas mudanças nas canções – e o que ele não sabia é que, nos bastidores, Phil lidava com as consequências de um doloroso divórcio, além de depressão e alcoolismo. Os dois brigaram feio, e, de acordo com essa entrevista, a parceria bem sucedida de décadas entre Phil e Chester terminou com a demissão desse último, e com o consequente fim da amizade entre essas lendas da bateria. O documentário seria uma ótima oportunidade para honrarem seu legado juntos, mas acabou não acontecendo.

O outro problema do filme é menos grave (e até compreensível), envolvendo a narrativa em torno da atual condição de Collins. Qualquer fã ou admirador do músico vai se emocionar ao ver o músico caminhando lentamente com a ajuda de uma bengala, incapaz até mesmo de realizar simples viradas ao se sentar diante da bateria. Para Nic Collins, a falta de ergonomia do antigo kit Gretsch usado por seu pai é o motivo pelo qual Phil está nesse estado.

Essa é uma verdade parcial, eu diria. Hoje em dia, os fabricantes de equipamentos e instrumentos são bem mais atentos à questões de ergonomia, de fato. Mas o caso de Phil Collins tem a ver tanto com seu temperamento workaholic (em 1985, o músico entrou para o Livro dos Recordes Guinness por fazer dois shows em dois continentes num único dia!) quanto com sua negligência em cuidar da própria saúde (nesse sentido, a narrativa do próprio Collins ao escrever a autobiografia Not Dead Yet contradiz o documentário do Drumeo).

Em 2007, na turnê de retorno do Genesis, Phil deslocou algumas vértebras tocando bateria, e teve que se submeter à inúmeras cirurgias (mal sucedidas, infelizmente). No documentário Come Rain or Shine, de 2007, o músico Daryl Strummer (que desde 1978 toca ao vivo com o Genesis e com Phil Collins solo) deu declarações que deixam implícito como Phil não se preparou fisicamente para a turnê. Aparentemente, depois de anos sem tocar bateria, Collins (na época com 56 anos) resolveu reproduzir os intricados arranjos das canções do Genesis sem se atentar ao seu condicionamento físico ou à falta de prática com o instrumento.

Além disso, de acordo com a autobiografia do músico, o problema do pé caído (que o obriga a andar de bengala hoje em dia) foi fruto de uma queda no palco nos anos 1980. Apesar de ter sido algo grave na ocasião, Collins nunca se preocupou em ir ao médico ou fazer exames, até descobrir em meados de 2010 que o dano ósseo dessa queda piorou ao longo dos anos, chegando infelizmente a um ponto irreversível. Por fim, após o divórcio com (sua terceira esposa) Orianne Cevey em 2006, Phil começou a beber, e seu crescente alcoolismo lhe rendeu problemas como diabetes tipo 2 e pancreatite. Ao produzir Drummer First, Nic Collins optou por omitir esses problemas e interpretar a decadência física de seu pai como um efeito colateral de tantos anos dedicados a tocar bateria.

Enfim, apesar de algumas lacunas e imprecisões factuais, a maneira como a narrativa foi organizada visa, sobretudo, evocar uma bem vinda dignidade ao lendário músico em sua retrospectiva da carreira. O fato é que esse documentário da Drumeo consegue fazer justiça aos méritos de Phil Collins como baterista, honrando sua enorme contribuição ao instrumento. O filme pode ser assistido gratuitamente no You Tube, e é uma experiência altamente recomendável para todos os amantes de rock progressivo e pop.

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Passatempo ou Produtividade?

A batalha pelo nosso tempo livre

1.

Se dedicar a uma atividade que parece fazer o tempo parar. Você olha para o relógio, e muitas horas transcorreram sem que você se desse conta. Um tempo em que você foi capaz de esquecer até de si mesmo.

Isso já aconteceu na sua vida? É algo frequente, ou é um fenômeno raro? No geral, você é daquelas pessoas que sentem um nó na garganta nos domingos, sabendo que a segunda feira está prestes a chegar? Ou você vive com entusiasmo em todos os dias da semana?

É possível sentir entusiasmo por tudo? Ver cada tarefa da vida como se fosse apenas um passatempo?

2.

Passatempo: substantivo composto, mesclando o verbo “passar” e a palavra “tempo”. Dois radicais que, ao serem combinados, adquirem novo valor semântico.

É uma versão própria para o português do estrangeirismo hobby. Que deriva do termo inglês hobyn (pequeno cavalo, pônei), e resume uma expressão usada na Inglaterra do Século XVI: hobby horse – um cavalo de madeira usado pelas crianças nos momentos de lazer.

3.

O novo texto da newsletter da Vanessa Guedes parte do conto “Sensação de Poder” (de Isaac Asimov) para discutir questões sobre inteligência artificial, perda da curiosidade e cansaço cognitivo. Ao longo do texto, Vanessa aborda a neurose coletiva que nos faz levar a questão da produtividade para nossos momentos de lazer. É um texto abrangente, que busca entender como somos impelidos a quantificar e exibir até mesmo nossos instantes privados, tentando ainda alcançar algum tipo de métrica de desempenho exigida socialmente. Vejam esse trecho:

No conto do Asimov, fazer contas era um passatempo para o homem que (re)ensinou aos outros a calcular. É emblemático usar o termo “passatempo” aqui, parece uma palavra arcaica, quase sem sentido. Quem desfruta tranquilamente de passatempos? Algo assim, sem compromisso nenhum, que não se faça pensando na hora de postar o resultado final? É difícil generalizar o passatempo mais comum das pessoas hoje, não consigo pensar em nada muito elaborado. Games, doomscrolling?

4.

Coincidentemente, eu tinha assistido um vídeo horas antes de ler o texto da Vanessa, e ele tratava de um tema parecido. O autor é um mestre espiritual brasileiro, um professor de ioga chamado Sri Prem Baba.

Ele discutia os benefícios da respiração e da meditação para a cura interior, visando despertar a consciência do indivíduo sobre o sofrimento do próprio corpo. Esse método representa uma jornada de autotransformação que, por trazer perspectivas mais profundas sobre sua própria finitude material, te leva a não querer perder tempo precioso com distrações frívolas do mundo exterior. Destaquei aqui um trecho:

(Com a respiração consciente e a meditação) você deixa de reclamar, de se vitimizar. Você não se distrai mais com os desafios, você os aceita, e entende que são os efeitos especiais da jornada. Mas segue firme no seu propósito de sustentar essa conexão e de seguir vendo Deus em todos, amar a todos, servir a todos.

E quando você estabelece essa unidade com o divino, o próprio fazer no mundo se torna um passatempo (risos). Como a gente gosta de passar o tempo? Eu por exemplo gosto de cantar. (…) A gente dança, canta. Aprecia profundamente o silêncio.

5.

Um amigo montou um canal na internet para transmitir ao vivo a tela de seu videogame. Ele liga o jogo Fifa no seu Playstation 5 no horário marcado, e subitamente milhares de pessoas se conectam para assisti-lo jogar. Mais inusitado do que constatar que existe um público disposto a te ver jogar videogame é perceber que você pode ganhar dinheiro com esse tipo de transmissão.

6.

Quando alguém se dedica a um passatempo, o principal objetivo envolve realmente fazer jus ao significado da expressão: ver o tempo passar rapidamente, escoar – o tal estado de flow que está tão na moda nas redes sociais. Trata-se de uma atualização do termo “estado de fluxo”, cunhado pelo psicólogo húngaro-americano Mihaly Csikszentmihalyi.

Na física quântica, há quem se refira à essa condição como estado de “não-tempo”, que é quando a pessoa nem nota o tempo passar. A teoria da relatividade de Einstein trata justamente de como a sensação de tempo depende do referencial – o mesmo fenômeno que a mecânica quântica apurou no famoso experimento da dupla fenda.

Entretanto, o que notamos de maneira mais presente na nossa sociedade é uma urgência que, ao invés de levar à dissolução do tempo, faz com que as pessoas não vivam suas próprias vidas, fugindo do tédio e, em última análise, de si mesmas.

https://youtu.be/kwxyT5n6E9o):

Vejam essa citação da psicóloga Maria Rita Kehl (retirada de uma palestra dada ao Café Filosófico chamada Aceleração e Depressão):

(…) Tem uma frase de um paciente que usei como epígrafe (em um) livro. Ele diz assim: “nossa, eu percebo que eu vivo assim: vamos andar logo com isso, para acabar logo, para ir pra casa logo, para dormir logo, para acordar logo, para começar a trabalhar logo, para ir dormir logo, para viver logo, para morrer logo”.

Maria Rita prossegue analisando que, obviamente, você vai morrer na idade que tiver que morrer, mas que a sensação de morrer logo resume, na verdade, o anseio de correr achando que se vai chegar em algum lugar. Quando o resultado disso, desse correr intermitente, é apenas chegar na morte mais depressa – ou com a sensação de não ter apreciado cada momento da vida.

7.

A visão de “passatempo” proposta pelas tradições orientais (como o ioga, o taoísmo, o budismo e outras) não envolve a fuga do tédio, mas a aceitação do tédio. Abraçar a vida de maneira irrestrita. Se uma pessoa se torna capaz de amar profundamente a si mesma, de se perdoar e se aceitar em profundidade, ela será capaz também de desfrutar de cada instante nessa vida, nesse planeta.

O paradoxo aqui é que, se você aceita cada instante com genuíno amor, a sensação de continuidade linear do tempo se dilui. Ao manter sua consciência plenamente presente, no “agora”, a impressão é a de que se interrompe a contagem do tempo.

Como quando o mestre espiritual indiano Sadguru relatou que, ao alcançar o estado de samadhi (iluminação), aos 25 anos de idade, ele se sentou sob uma árvore acreditando que tinham se passado algumas horas; entretanto, as pessoas que o observavam relataram ter se passado treze dias desde que o jovem iniciou sua meditação naquele mesmo local.

8.

A dedicação que um monge ou um buscador espiritual dedicam ao estado de samadhi pode parecer muito distante do que podemos vivenciar em nossos estilos de vida no Ocidente. Mas cada vez mais cresce no mundo contemporâneo o interesse pelas práticas de mindfulness, que seriam adaptações secularizadas voltadas para contextos médicos e psicológicos. Trata-se de uma prática baseada em evidências, que se encaixa tanto para ambientes laicos e ateus quanto devocionais e espiritualizados.

9.

Existem várias maneiras de passar o tempo. Na internet, chama-se de timeline aquela tela inicial das redes sociais onde as postagens quase infinitas se desenrolam para o internauta.

Temos a responsabilidade de dizer se vamos delegar a passagem da nossa linha do tempo à algoritmos e curadores externos. Ou se preferimos encarar a responsabilidade por nossas próprias decisões e o uso do nosso tempo.

Agradeço a leitura dessa edição de Além da Letra – Rafael Senra! Se puder, deixe um like (coraçãozinho), ou recomende para um amigo. Abraço e tudo de bom!

Aforismos sobre a morte

Ideias mais ou menos encadeadas e uma história pessoal

Meados de 2001; uma das primeiras vezes em que eu entrava num estúdio de gravação musical. Sala lotada, muita gente conversando coisas técnicas sobre microfones, afinação do violão, ruído do sinal, blablabla. Até que alguém diz “ele morreu!”. Subitamente, todos se esquecem do que estavam a fazer, tomados (no mínimo) pela curiosidade com a identidade do dito cujo que partiu dessa para a melhor. Nem um relâmpago teria gerado efeito parecido.

O mais engraçado é que, hoje em dia, nem lembro do nome do falecido. Só me recordo do efeito que a palavra “morte” causou entre as pessoas ali presentes.

*

Nós, humanos, não trazemos de fábrica dispositivos internos que nos permitam lidar com a morte de um modo ameno ou pacífico. Por isso, inventamos dispositivos externos físicos e simbólicos: rituais fúnebres, simpatias, unguentos, cemitérios.

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A morte de um ente querido é sempre um vendaval no íntimo. Conversando esses dias com o amigo Kadu Mauad, ele disse que, de acordo com alguns neurocientistas, nossa psique interpreta um parente ou um amigo próximo como se fossem espaços de segurança. Mais do que pessoas queridas, são esteios da nossa própria vida.

*

Quando alguém próximo morre, nós morremos junto – no sentido que precisamos renascer em nossos hábitos e nossas percepções de mundo. Nada será como antes, hoje ou amanhã. O luto não é apenas pelo ente que partiu, mas pelo modelo de vida que perdemos para sempre.

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A consciência da morte não é privilégio apenas de seres humanos. Elefantes, por exemplo, tem o hábito de inspecionar corpos de membros falecidos, carregá-los ou cobri-los com galhos e terra – no que parece ser um tipo de luto. Há registros de primatas que carregam os corpos de seus filhotes mortos por dias ou semanas, como se tivessem dificuldade em aceitar a perda, e comportamentos semelhantes já foram detectados entre baleias e golfinhos. Além disso, é comum ouvir histórias de cachorros que param de se alimentar diante da ausência do dono, ou gatos que fogem de casa após notar que seu tutor não se encontra mais naquele local. É difícil saber se tudo isso significa uma mera reação pela ausência física de alguém, ou se são realmente manifestações de luto no reino animal.

*

Humanos têm a faculdade da memória como uma simultânea bênção e maldição. Por mais que o sistema queira vender seus cursos de leitura dinâmica ou memorização sofisticada, sabemos que, muitas vezes, o grande alívio está em se esquecer das coisas.

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Dizem que uma das coisas mais duras sobre envelhecer é acompanhar o falecimento de pessoas do seu entorno. Dói ainda mais quando você perde alguém que esteve por perto durante toda a sua vida. Porque a presença daquela pessoa era sinônimo da vida mesma.

Desde seus primeiros anos, você aprendeu que a cor do céu durante o dia é azul, que o sol está sempre a brilhar, que precisamos beber água, e que aquela pessoa do seu lado é uma pessoa de carne e osso. Perder um ente querido que você conhece por toda a vida é como ver o sol se apagar. Parece uma traição da natureza.

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Minha prima Renata está agora em outro plano de existência. Tentar encontrar uma síntese para esse tipo de perda é tarefa árdua. O sentimento é o de ver seus braços e pernas amarrados em lugares diferentes, e você tenta exercer sozinho uma força centrípeta forçando cada vetor para o centro, buscando de maneira forçada um equilíbrio que parece irrecuperável.

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Tenho tantas memórias da Renata que seria possível escrever um livro. Não seria uma biografia dela, mas sim um relato afetivo de alguém com quem você teve a honra e a alegria de conviver.

É como observar pela janela. Você não tem a paisagem completa, só um índice dela. Contudo, apesar de ser um recorte de algo maior, o que você vê já é um mundo.

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Em um dia do século passado, quando éramos adolescentes, o amigo Filipe Jiló ligou para a casa dos meus pais e me convidou para testar sua mais nova aquisição: um telescópio. Naquele dia ensolarado, enxergar estrelas estava obviamente fora de cogitação. Mas os jovens são ansiosos, e, na falta dos astros celestes, fomos observar a cidade de Congonhas.

Subimos para a Praça Bandeirantes, e de lá chegamos no Cruzeiro, que é uma espécie de mirante dentro da cidade, de onde se abre uma vista majestosa de Congonhas. De lá, apontamos o telescópio para casas, avenidas, e era vibrante poder enxergar detalhes tão minuciosos assim de longe, bancando os voyeurs de nossos conterrâneos.

Dali, caminhamos para um outro ponto ainda geograficamente elevado: a Igreja Bom Jesus de Matosinhos, o grande cartão postal de nossa cidade natal, onde está um dos mais significativos acervos de Aleijadinho, com as estátuas dos doze profetas, o adro e seu conjunto arquitetônico barroco. Eu e Filipe nos sentamos no platô de uma das capelas, logo abaixo da Igreja.

Até que avistei a parte de trás da casa da Renata, localizada a quilômetros de distância. Tive a ideia de ligar para ela do meu nokia 3210 (um modelo ancestral de telefone celular que, em vez de câmeras e aplicativos, apenas ligava e enviava SMS de texto – com taxas absurdas). Quando minha prima atendeu, eu disse: “Rê, vou te pedir uma coisa muito louca. Se você puder, vá para a janela da parte de trás da sua casa, a janela do quarto dos seus pais”.

Lembro vividamente da emoção de avistar na lente do telescópio o momento em que Renata apareceu na janela do segundo andar. Hoje em dia, acostumados que estamos com videochamadas e reuniões remotas, é difícil traduzir o encanto de ligar para alguém de longe e poder obter uma imagem da pessoa no meio da conversa.

Então, me sentindo um mágico como o Mister M, eu disse: “você está com uma blusa branca, não está?”. Ela arregalou os olhos, e disse “como você sabe??”. “É que eu estou na basílica, com um telescópio”, respondi. Atônita, ela caiu na gargalhada. Ela então fez alguns sinais com as mãos, e sorriu quando me ouviu adivinhar cada um deles.

No meu arquivo afetivo de lembranças relacionadas à Renata, essa é uma das que considero mais singelas e poéticas.

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Um mundo de telefones que apenas faziam ligações, de internet discada, um mundo de presenças. As angústias e alegrias eram outras. Esse é um mundo que morreu. É curioso como somos capazes de viver muitas vidas em uma única vida.

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O século XXI tem tecnologias sofisticadas, mas os telefones hiperconectados de agora não permitem que eu ligue para minha prima. Não há telescópio que me permita vê-la novamente.

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Muito antes dos telefones, dos telescópios, bússolas, astrolábios, e antes que inventássemos a roda, nós possuíamos dispositivos natos: Memória. Coração.

Muitas tecnologias morreram e renasceram ao longo dos séculos. Algumas surgiram da paixão de artesões e alquimistas. Outras precisaram receber subsídio do governo norte-americano. Mas a memória e o coração nunca deixaram de ser nossos aparelhos mais sofisticados.

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Entre a homenagem e o plágio: o dilema do pastiche

Uma defesa desse polêmico procedimento das artes e da arquitetura

1. O que é um pastiche

Minha cidade natal, Congonhas, é conhecida por abrigar o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Esse conjunto arquitetônico (que, além da igreja, compreende o adro, com as estátuas de doze profetas bíblicos e mais seis capelas anexas) é considerado pela UNESCO como o maior museu barroco a céu aberto no mundo. Mas, apesar desse acervo, Congonhas não exibe proporcionalmente tantas casas e imóveis com fachadas conservadas – pelo menos na comparação com outras cidades históricas mineiras localizadas na Estrada Real, como Ouro Preto ou Diamantina.

Assim, as casas e prédios públicos da cidade com aspecto supostamente antigo acabam chamando a atenção. Certa vez, eu estava andando com alguns amigos pelas ruas de Congonhas, e apontei para a Câmara dos Vereadores (local onde, atualmente, funciona a Biblioteca Municipal), e elogiei o acabamento do prédio. Ao que um amigo me corrige:

“Mas, Rafael, esse prédio não é realmente barroco. Ele é um pastiche!”.

Foi a primeira vez que ouvi essa palavra. Nesse dia, descobri que, na arquitetura, se diz que uma obra é um pastiche quando ela imita ou emula um estilo já consagrado. Foi o caso desse prédio que apontei, construído no século XX, mas trazendo elementos do barroco produzido entre os séculos XVII e XVIII.

Em algumas das cidades históricas, o pastiche se mostra um recurso bem empregado para tentar reestabelecer uma aura de preservação geral – como uma maquiagem pseudohistórica em imóveis que, na verdade, foram feitos recentemente. O maior exemplo disso seria Tiradentes, tido como um dos mais belos municípios de Minas, mas cujo centro histórico foi gentrificado a partir dos anos 1990, com a consequente reconstrução de casas e prédios públicos imitando o estilo barroco.

2. Origem do termo

A expressão “pastiche” é derivada da palavra italiana pasticcio, cujo significado alude a uma mistura de diversos elementos. No século XVIII, os franceses adaptaram o conceito para o galicismo “pastiche”, se referindo a pintores que imitavam o estilo já consagrado por outros autores ou movimentos.

Alguns procedimentos que podem ou não constituir um pastiche são:

– a adaptação (que é quando um autor refaz – fielmente ou não – um conteúdo específico, seja na mesma mídia/linguagem ou em outra),

– a apropriação (quando elementos próprios de outra cultura ou outra obra são utilizados por determinado autor, numa espécie de “empréstimo”),

– ou a bricolagem (que é quando uma obra se utiliza de diversas referências e modelos, misturando tudo isso em uma nova criação).

3. Pode comer, ou faz mal?

Quando as pessoas em geral se deparam com um pastiche, sempre paira a mesma dúvida: é homenagem ou tiração de sarro? Essa ambiguidade faz parte da modalidade pastiche, sempre indefinida entre a categoria de cópia grosseira ou de tributo honroso.

Mas a ambiguidade mais grave em torno do pastiche é ser confundido com um pecado mortal no mundo das artes: o plágio.

Em 1990, a escritora Ana Miranda acabara de publicar seu best seller Boca do Inferno, quando o professor de literatura portuguesa da UNICAMP Antonio Alcir Pécora publicou um texto no caderno Ilustrada (Folha) denunciando um suposto plágio de Miranda. Sendo pesquisador especialista na obra do Padre Vieira, Pécora afirmou que a escritora usou textos inteiros do autor barroco sem citar a fonte.

Ana acabou sendo defendida pelo jornalista Caio Túlio Costa, que, também na Folha, escreveu um artigo demonstrando como textos clássicos são constantemente citados na história da literatura universal como um procedimento já estabelecido.

4. Visões do pastiche, no passado e no presente

Na verdade, o pastiche é parte do panorama artístico pós-moderno – vide as latas de sopa pintadas por Andy Warhol. A verdade é que a apropriação e a repetição de motivos são aspectos que nunca deixaram de existir na história da arte: o que mudou foi o seu status diante da crítica e do público.

O historiador da arte Arthur Danto afirma que, em meados do séc. XVIII, houve uma mudança no mundo ocidental sobre o que seria de fato “arte”. A partir daí, muitos teóricos mais conservadores começaram a propagar uma noção apocalíptica de “fim da arte”, pensando que a abordagem clássica (herdada da tradição greco-romana) teria morrido. Porém, para Danto, isso diz respeito nem tanto ao fim, mas ao enfraquecimento de um tipo de arte – mais calcada no paradigma clássico da mímesis aristotélica.

Na sua obra Poética, Aristóteles propunha o paradigma mimético como um conceito para se pensar o mundo através da imitação e da repetição. Em uma síntese talvez grosseira aqui, eu resumiria a mimesis como a tentativa de representar uma outra coisa qualquer – seja um objeto, uma pessoa, um lugar, um sentimento, etc.

Essa perspectiva, que permeou a história da arte por séculos, fazia com que os artistas pensassem nas referências explícitas como verdadeiras homenagens. Os poetas árcades, por exemplo, têm estrofes inteiras de seus poemas extraídas de versos de Virgílio ou Camões.

Mas tudo muda a partir do século XVIII, quando o romantismo consagra uma noção de arte baseada na originalidade. A partir daí, procedimentos como o pastiche acabam sendo vilanizados.

5. Uma solitária defesa

Confesso que sou um apreciador dos pastiches. Meu apoio a esse tipo de abordagem me leva as vezes a cometer algumas gafes. Outro dia, uma amiga tomou a iniciativa de mostrar a gravação de uma música cantada por ela, e eu de cara comentei “nossa, sua voz lembra a da Elis Regina”. Apesar da intenção de elogiar, percebi de imediato que a frase foi recebida com certa reserva. É como se paralelismos dessa natureza não representassem um valor, um dado positivo. E eu nem quis dizer que essa amiga estava fazendo um pastiche. Minha intenção era dizer que o trabalho dela dialogava com a tradição da MPB, e que ela se inseria em uma egrégora maior que ela mesma.

Existem exemplos de pastiches no mundo contemporâneo que receberam aclamação pública. Veja o caso de uma das bandas mais bem sucedidas dos anos 1960: o Creedence Clearwater Revival. Eles exploravam temas, sonoridades e atmosferas do sul dos Estados Unidos, especialmente da Louisiana e de regiões com forte influência do blues, do country e do swamp rock.

Apesar de evocarem o imaginário do sul americano – suas paisagens pantanosas, tradições musicais e até o sotaque local do Southern rock – seus integrantes eram, pasmem, da ensolarada Califórnia. Embora a apropriação dessas referências possa ser vista como um tipo de pastiche, a música do Creedence geralmente é tratada com respeito, por conta da autenticidade emocional e pela qualidade das composições.

Tudo bem que ninguém pensa no Creedence como uma banda que produz arte “elevada”. Mas não foi à toa que Pablo Picasso afirmou que se “os bons artistas copiam, os grandes artistas roubam”. E, antes dele, Voltaire teria dito que “a originalidade nada mais é do que a imitação criteriosa”.

O pastiche adquiriu uma conotação pejorativa justamente por ele lembrar a todos nós de que não existe arte completamente original. Tudo dialoga, tudo se influencia mutuamente. O inconsciente individual estará sempre submetido ao magnetismo do inconsciente coletivo.

*

Ps: Essa newsletter, que era semanal, passará a ser quinzenal. Por isso não teve post no dia 16/11/2024. Entretanto, por conta de uma perda familiar, não foi possível postar no dia 23/11/2024.

A crise da autenticidade

A verdade que você busca está escondida atrás do conforto

Os EUA elegeram Donald Trump, e todos estão falando sobre isso. É o meu caso também – mas precisarei de um breve preâmbulo.

1. O caso da “bolsa vermelha”

Esses dias, circulou nas redes sociais uma cena extraída da série catalã Merlí, Sapere Aude (uma série derivada da prestigiada Merlí) muito interessante:

https://youtu.be/bUCtTbskkps

Uma professora inicia sua aula propondo um experimento para os alunos: ela quer provar que a “mente humana é frágil” e que “temos uma tendência a falar o que os outros fazem e dizem”. Ela exibe uma bolsa e pergunta qual é a sua cor. “Verde”, dizem os alunos.

A professora combina então uma brincadeira com os alunos presentes na classe: se ela lhes perguntar a cor da bolsa, mesmo sendo verde, eles devem responder que é vermelha.

Até que chega um aluno atrasado, e a professora faz a pergunta. Espantado, o rapaz se depara com todos alegando que a bolsa verde é vermelha. Até que ele próprio é questionado pela professora, e ele responde que, sim, a bolsa é vermelha.

2. O caso do pedido de licença

A cena trouxe uma recordação dos meus vinte anos. Eu cursava um pré-vestibular na cidade de Conselheiro Lafaiete, em que mais de cem alunos com ambições de cursar o ensino superior se encontravam ali semanalmente para ter aulas de diversas disciplinas.

Certo dia, era aula de história, e saí para ir ao banheiro. Quando retorno e abro a porta da sala, eis que me deparo com todos (inclusive o professor) olhando para mim e morrendo de rir. Na hora, pensei: “será que esqueci de subir as calças??”.

Quando retornei à carteira, as colegas ao lado gargalhavam da minha cara. Perguntei de imediato o que aconteceu, e uma das colegas esclareceu:

“Rafael, o professor tinha interrompido a aula, dizendo que não aguenta mais os alunos mal educados entrando na sala sem pedir licença. Ele falou indignado: ‘aposto que nesse exato momento vai entrar mais um cara-de-pau por essa porta e não vai pedir licença!!’”.

Foi quando o ingênuo aqui entrou pela porta no momento em que todos a observavam, e, contrariando as expectativas gerais, disse “dá licença”, como se estivesse (sem querer) numa cena de stand-up comedy.

3. Comportamentos de massa

O meu caso foi o oposto do aluno de Merlí: eu não disse o que o professor achava que seria dito. Mas nem posso me gabar de ter decifrado um artifício (que nem sabia que fora proposto), ou de ter conscientemente articulado uma contrarresposta.

Eu simplesmente obedeci a um condicionamento, a uma deferência que me foi inculcada como um código de etiqueta que resolvi manter ao longo da vida.

Todos os alunos do cursinho sabiam que o correto numa situação dessas é pedir licença, mas poucos mantiveram esse hábito. Por que as pessoas acabam por abrir mão de uma série de protocolos que constituem parte do nosso pacto de sociedade?

4. Instintos humanos e tecnologia

Uma boa resposta seria consideravelmente complexa, e ambiciosos sociólogos, psicólogos e mesmo cientistas políticos teriam muito a dizer. Como palpiteiro profissional, me atreverei a comentar evocando aqui a noção de instinto.

Como qualquer ser vivo, o ser humano tem suas propensões natas e seus instintos voltados para necessidades básicas, como sobrevivência ou reprodução. Mas existe uma tensão intrínseca da nossa espécie:

Por um lado, dependemos da cooperação mútua em vários níveis: seja para a produção de hormônios como ocitocina no nosso corpo, ou simplesmente pela necessidade de resolver problemas práticos de toda ordem.

Por outro lado, existe uma tentação de tomarmos decisões visando apenas benefícios individuais, entrando em contradição com a questão da coletividade.

O curioso é que, nessa época de um desenvolvimento tecnológico nunca antes experienciado pela humanidade, esperava-se que algumas dessas questões instintivas teriam sido resolvidas.

Entretanto, paradoxalmente nos deparamos com uma verdadeira pandemia de precariedade material, problemas de saúde mental e outras mazelas existenciais.

5. Mais consumidores, menos cidadãos

O fato é que, diante de um capitalismo que molda o comportamento humano para que todos sejam consumidores em vez de cidadãos, as pessoas acreditam que podem pagar (com dinheiro ou com o seu tempo livre) por qualquer serviço.

Inclusive pela tarefa de pensar por si mesmo. Enquanto isso, o córtex pré-frontal (a área do cérebro que toma as decisões e que guia o indivíduo) segue atrofiando…

No modelo de vida burguesa digitalizada do século XXI, nossa rotina está cada vez mais entregue ao automatismo. Na verdade, até desejamos que o automatismo ocorra. Queremos alguém que traga fórmulas mágicas que tirem de nós a responsabilidade pela tomada de decisões.

O mais curioso (ou nem tão curioso assim) é que o mesmo sistema que preparou o contexto para que você queira continuar confortavelmente entorpecido é o sistema que te trará as esperadas fórmulas mágicas.

6. A “contracultura” que a cultura dominante apoia

A extrema-direita é a cristalização ideológica e retórica de todo o mecanismo que molda a matrix da nossa sociedade contemporânea. E esse mecanismo é tão bem engendrado que ele consegue vender a si mesmo não como a matrix em si – mas como a contracultura da matrix.

E não citei o famoso filme estrelado por Keanu Reeves à toa. Pensem que, atualmente, existe toda uma geração de jovens reacionários do sexo masculino definindo a si mesmo como red pill (não importa que as autoras da franquia de filmes Matrix sejam trans), acreditando que eles – e apenas eles – ultrapassaram a ilusão por trás de todas as coisas.

E o que dizer de Olavo de Carvalho, que elaborou para si a persona de um guru contracultural reacionário, com aparência de um líder das trincheiras, mas que, em última análise, defende a manutenção do sistema?

Sim: é muito claro perceber (para qualquer um que acredite que a Terra é redonda, pelo menos) que é papo furado a história de que a extrema-direita vai implodir o capitalismo: ela vai de fato é intensifica-lo.

Por trás da conversa de algo “novo”, na prática o que veremos é um hipercapitalismo operando em modo turbo. Perceba que os grandes ícones desse campo nos EUA (gente como Trump ou Musk) são bilionários.

Que raio de contracultura é essa que brota do topo da cadeia de classes? Uma contracultura que recebe orçamentos milionários por debaixo dos panos, através de grandes institutos ou de startups diversas?

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7. Epidemias psíquicas

O mecanismo exato que permite a proliferação dessa turba está bem definido na cena de Merlí citada no início do texto. É o que Carl Jung chamava de contaminação psíquica.

É como se estivéssemos vivendo uma pandemia de informações falsas. Não à toa que, de acordo com Ted Gioia (do canal Honest Broker), a palavra mais pesquisada no Google em 2024 é falso (fake).

The Honest Broker
Is There a Crisis of Seriousness?
Back in 1996, critic Susan Sontag warned that seriousness was disappearing from society…
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Gioia compara o crescimento de fake com a queda nas buscas de uma outra palavra: ação (action). Ele detecta nessa constatação uma tendência mundial de pessoas e grupos dispostos a lucrar com a falsidade, e seu modus operandi busca incentivar o repúdio a objetos inescapáveis da experiência, algo que podemos definir aqui através de palavras simples, como:

– real

– tangível

– único

– autêntico

– manual, artesanal (produzido pela mão humana)

8. Crise da autenticidade

Lendo isso, percebo que o conceito de “aura” prenunciado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica se mostra cada vez mais eloquente.

Imaginávamos que, em uma era de computadores e telas, as pessoas diminuiriam suas visitas ao Louvre para contemplar a Monalisa, mas ocorre o oposto. Museus cada vez mais lotados, com mais e mais pessoas querendo ver de perto a obra real.

Em um primeiro momento, isso parece ser um antídoto da falsidade (e é). Mas o sistema já cooptou a demanda pelo “real”.

Os arautos do falso se valem de inúmeras estratégias para capitalizar a busca pela verdade, e uma delas envolve criar verdades alternativas (eu sei que você pensou no canal Brasil Paralelo aqui).

Ou seja, se a “contracultura” (super entre aspas) da direita não tem poder para tirar a Monalisa do Louvre, eles têm várias outras opções de ação:

podem esvaziar seu aspecto simbólico, relativizar sua importância, afirmar que essa pintura é uma falsificação, que é obra de comunistas, que é mal feita, ou dizer que existia um outro pintor muito melhor que Da Vinci que o mercado da arte renascentista sabotou por maldade.

Em um mundo onde as pessoas vivem cada vez mais no âmbito do instinto, prescindindo de pedir licença ou de dizer “obrigado”, há uma crise sem precedentes da autenticidade, da lealdade, e, sobretudo, do real.

No fundo, as pessoas querem a verdade, e a Monalisa pixelada na tela de um celular é apenas um paliativo. A busca pelo real é o impulso que impele tanta gente, no campo político, a abraçar um Trump ou um Milei.

9. A alegoria do navio

Isso decorre também de um vácuo do campo da esquerda mundial, que abriu mão de defender revoluções e utopias quaisquer. Os progressistas parecem mais preocupados em pactuar, conciliar e administrar o estrago que o neoliberalismo tem deixado no planeta.

A esquerda eleitoral só parece radical dentro do discurso olavista. Na prática, a esquerda se tornou o centro.

Para explicar como o campo da esquerda e o campo da direita atuam nesse mundo pós-pandêmico, tomarei a liberdade de evocar aqui uma alegoria:

Se estivéssemos em um navio à deriva, o campo da esquerda seria representado por um candidato a capitão que quer seguir navegando sem usar qualquer tipo de bússola.

Já o candidato à capitão da extrema-direita tornou-se preferido por boa parte dos entediados marujos, timoneiros e encarregados do andar de baixo, e o motivo é que ele tinha um plano: pegou uma picareta e disse que era uma bússola.

Como apenas um deles tinha uma proposta, a tripulação escolheu seu novo capitão. Finalmente, alguém apareceu com uma proposta concreta! Aliviados, os marujos abriram suas garrafas de aguardente e se recostaram em suas redes.

Enquanto isso, a picareta (que não era bússola) era usada pelo novo capitão para rachar o casco da embarcação e iniciar um naufrágio.

“Mas por que alguém destrói o navio que representa sua única chance de navegação e sobrevivência”, você se pergunta?

Porque o instinto do benefício individual é mais forte em algumas pessoas do que as necessidades coletivas. Um benefício de curto prazo é recompensa suficiente para eles – mesmo que isso signifique a aniquilação geral.

10. De onde virá uma mudança real e oportuna?

O preço que você precisa pagar para uma mudança real e para uma bússola de verdade envolve abrir mão da sua zona de conforto e do seu confortável entorpecimento. Sua Netflix, seu ar condicionado, e as tranquilizantes quatro paredes da sua casa.

Para a esquerda “caviar”, isso implica em ir para as periferias – não apenas botar os pés lá em ano de eleição, mas criar espaços de convivência permanentes com as classes populares. Os líderes da direita já estão na periferia (ainda que por interesse).

E para pessoas do campo da direita e conservadores em geral, a busca pela verdade implica na recusa dos discursos falsos e dos simulacros que são o sustentáculo dos partidos e líderes reacionários em geral. O caminho é se afastar da Faria Lima ou da sua igreja, e se dispor a conversar com pessoas que pensam diferente.

11. As consequências de não mudar

Essa não é uma tarefa fácil, por vários motivos: os instintos nos impelem para a zona de conforto, e o sistema usa isso a seu favor.

Eis o anátema do discurso da extrema-direita: Trump diz que você pode continuar vivendo a sua vida de sempre, e ele fará o serviço sujo para você. Ele sabe que é tudo que você quer ouvir.

O spoiler é óbvio: ele não fará o serviço sujo. Em vez disso, te entregará um vídeo falso feito por IA com resultados que não existem. E você vai acreditar.

Não porque você seja estúpido, mas porque você está desesperado para obter mudança sem abrir mão do seu conforto. Afinal, você foi treinado para ser um consumidor, e não um cidadão.

12. O antídoto

Portanto, se você quer se curar das mentiras, eu diria que o caminho está no incentivo à diversidade.

O princípio da contaminação psíquica pode ser facilmente entendido quando você pensa em uma monocultura alimentar.

Se você planta apenas uma espécie de maçã, trigo, soja, o que for, os bichos e pulgões vão deitar e rolar.

Mas, se em vez de uma lavoura tradicional, você plantar uma agrofloresta – com várias espécies diferentes no mesmo ambiente, simulando a organização de um bosque ou uma floresta –, as pragas não vão proliferar.

Em vez de apoiar os discursos supostamente “antissistemas” veiculados por bilionários, que vão te deixar encarcerado no seu nicho, o ideal é promover espaços que funcionem como ecossistemas humanos de diversidade. Em um mundo que quer criar guetos e separar as pessoas, isso sim é ser realmente antissistema.

Caso contrário, você continuará achando que engoliu a red pill…

…quando tudo que fez foi responder para a professora que a bolsa verde era “vermelha”.

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Três caminhos (inusitados) para a esquerda brasileira

Reflexões por vezes absurdas para um problema real

As eleições de 2024 deixaram muita gente da esquerda com a impressão de que as estratégias atuais do campo progressista não estão se convertendo em ganhos eleitorais. Essa é uma meia verdade: o maior partido de esquerda do Brasil, PT, elegeu 40% mais prefeitos em 2024 na comparação com 2020 – e desde 2004 o partido dos trabalhadores não tinha um resultado tão expressivo na disputa das prefeituras brasileiras.

Ainda assim, muita gente de esquerda anda sem esperança com o futuro, acreditando que as coisas podem ficar bem complicadas nos próximos anos. Em entrevista à BBC, o pesquisador italiano Paolo Demuru afirmou que a direita radical foi responsável por sequestrar a pauta do trabalho e do desejo, e, através do uso compulsivo de fake News (que Demuru chama de “fantasias conspiratórias”), reabilitou para tantas pessoas algo que parece tremendamente escasso no mundo contemporâneo: a dimensão do sonho, da utopia.

Fato é que existem inúmeras causas que ajudam a explicar o crescimento da extrema direita no país. Mas um aspecto em especial me chama a atenção, servindo como motivação para esse ensaio: me refiro aos núcleos de sociabilidade e coletividade que atuam sobretudo através das igrejas evangélicas.

Enquanto acadêmicos de esquerda e direita se digladiam com palavras de ordem nas redes sociais e palanques midiáticos, o brasileiro pobre tem questões mais palpáveis para lidar no seu dia a dia – e os evangélicos conseguiram oferecer um discurso que, se não resolve, pelo menos atenua várias das demandas das classes populares. Na tentativa de correr atrás do prejuízo, o Presidente Lula tem sido mais ousado na proposição de políticas e projetos de lei com acenos generosos à bancada evangélica.

Em uma análise breve (porém muito certeira), o já citado Paolo Demuru comenta sobre como o surgimento da internet e das redes sociais foi gradativamente confinando as pessoas em rotinas mais solitárias, e teria sido a extrema direita que percebeu a necessidade de propor alternativas de experiências de coletividade. Nesse sentido, para além das igrejas, o que diríamos, sei lá, daqueles acampamentos dos golpistas na frente dos quartéis em 2023? Seria aquele carnaval conservador apocalíptico apenas mero pretexto para encontrar pessoas com opiniões parecidas?

Diante disso, pensei em escrever sobre alternativas de sociabilidade para o campo da esquerda; contudo, o texto que apresento aqui não se propõe de modo algum a ser sério, analítico ou mesmo acadêmico. Vou apresentar, de maneira lúdica e livre, sem nenhum tipo de metodologia ou esquema mais complexo, três alternativas para que a esquerda construa núcleos de sociabilidade que sejam acolhedores à classe trabalhadora e ao povo pobre do Brasil. São alternativas que tentam levar em conta que, dentro do campo progressista, existem aquelas pessoas que se identificam com religiões institucionalizadas e expressões de fé, ao lado das que não acreditam em nada disso.

De alguma forma, penso que, ainda que esse ensaio esteja muito longe de trazer reflexões exigentes e profundas sobre a crise das esquerdas, talvez paradoxalmente exista algo de pertinente e até de propositivo nessas propostas despretensiosas. Então, aí vai:

Alternativa 1: igrejas evangélicas de esquerda

Aqui, não há nada de novo para propor, visto que existem muitas igrejas de orientação mais progressista, como a Igreja Batista do Caminho – de onde saiu o Pastor Henrique Vieira (PSOL), deputado federal pelo Rio de Janeiro. Na verdade, desde a década de 80, existe no Brasil o Movimento Evangélico Progressista (MEP), cujas origens remetem ao Pacto de Lausanne, assinado em 1974 por líderes evangélicos de todo o mundo, e que viria a inspirar no Brasil a Teologia da Missão Integral, doutrina que considera a evangelização como algo inseparável da responsabilidade social.

Portanto, quem pensa que só existem em nossas terras igrejas evangélicas de cunho conservador, pautadas pela Teologia da Prosperidade ou pela Teologia do Domínio, é preciso saber que existem alternativas de profissão de fé e de sociabilidade cristã que estão calcadas em ideias e práticas de esquerda. Nesse sentido, a única proposição possível seria a de ampliar e apresentar essas alternativas em um número maior de localidades.

Alternativa 2: igrejas para quem não gosta de igreja

Não são poucas as pessoas que pensam que a tradição judaico-cristã representa o grande mal da humanidade. Ainda que essa tradição não seja apenas eclesiástica (pense na escolástica, que praticamente cria as universidades como as conhecemos), muita gente acredita que o clero e seus seguidores – sejam católicos, protestantes, pentecostais, e outras denominações – são os maiores responsáveis por tudo de ruim na história.

E se eu disser que não apenas existe um tipo de igreja que essas pessoas indignadas podem fundar, mas que esse tipo de organização pode ser uma baita alternativa para o campo progressista? Estou falando das igrejas satânicas.

Nos Estados Unidos, uma das maiores pedras no sapato de grupos conservadores que misturam política e religião tem sido o Templo Satânico (Satanic Temple, ou TST), fundado em 2013 na emblemática cidade de Salem, Massachusetts. As autoridades do Templo Satânico argumentam que, se organizações cristãs podem exibir símbolos religiosos ou influenciar políticas, o mesmo direito deve ser garantido a todas as religiões – incluindo o satanismo.

Esse argumento tem sido usado para, por exemplo, exigir espaço para estátuas satânicas em prédios públicos onde estão presentes monumentos cristãos. Muitas vezes, os satanistas não conseguem seus objetivos, mas sua iniciativa faz com que os governos de cidades e estados frequentemente repensem suas políticas, visando evitar confrontos maiores. Ou seja, para impedir a construção de uma estátua do Diabo, os políticos arquivam também o projeto para fazer a estátua de Deus.

O que igrejas como o Templo Satânico fazem é usar o argumento das igrejas conservadoras contra elas mesmas. Bancando (literalmente) os “advogados do diabo”, eles jogam na esfera pública uma questão importante: se é para misturar política com religião, a lei não deveria valer para todas as organizações religiosas – mesmo aquelas que veneram Baphomet?

Muitas pessoas acham que iniciativas dessa natureza são apenas uma brincadeira que usa do discurso satanista para “trollar” o sistema. A revista Vox chegou a dizer que o Templo Satânico teria contornos de “arte performática” em suas iniciativas. Mas, se olhar mais profundamente, você verá que essa organização chega a ser mais engajada que muitos grupos ditos de esquerda.

Na pauta do aborto, por exemplo, o Templo Satânico tem se mostrado como um dos mais ardorosos combatentes, entrando com ações judiciais contra diversos estados proibicionistas, e chegando até a fundar clínicas de aborto com aconselhamento gratuito remoto e realização de aborto medicamentoso.

Alternativa 3: igrejas para ateus

Vamos supor que você seja de esquerda, mas que todo o vestígio de fé que poderia existir na sua “alma” materialista foi direcionado não para Deus ou para Satanás, mas sim para Karl Marx. Sim, você até poderia apoiar algum tipo de iniciativa de sociabilidade progressista, mas não suportaria fingir que acredita em Lúcifer para endossar a criação de uma igreja satanista. Afinal, você é um ateu, e não consegue defender nem o céu e nem o inferno.

Nesse caso, vou propor aqui a criação do que pode ser pensada como uma “igreja do absurdo”, ou uma igreja lúdica (que nem precisaria ser chamada de igreja, mas vamos seguir com a linha argumentativa do texto), uma iniciativa mais poética e subversiva do que doutrinária, mero pretexto criativo para reunir pessoas e pensar em atividades que agreguem um potencial de brincadeira e descontração. Apresento-lhes a proposta de uma igreja patafísica.

A patafísica foi criada pelo escritor simbolista francês Alfred Jarry no fim do século XIX, e foi definida por ele como sendo “a ciência das soluções imaginárias”. Essa iniciativa inusitada usa a lógica do absurdo e do irracional para explorar os limites do conhecimento e da realidade, e tornou-se, ao longo dos anos, uma influência cultural e filosófica para diversos pensadores e artistas.

Apesar da patafísica ser considerada uma filosofia da ciência, penso que ela poderia facilmente inspirar uma igreja do absurdo. Nesse caso, qualquer lugar poderia se tornar um templo, e, caso você decida fundar uma célula dessa igreja, bastaria apenas fazer um altar e colocar a imagem de Alfred Jarry como uma referência de culto. Ou, caso não queira incentivar a idolatria nem de brincadeira, poderia substituir o retrato do criador da patafísica pelo do personagem Ubu Rei (protagonista da mais famosa peça teatral de Jarry). Em último caso, você pode trocar tudo isso por um altar que tenha apenas uma bicicleta (no calendário patafísico, os meses de fevereiro e março são substituídos pela alcunha pedal de bicicleta).

Em uma igreja dessas, qualquer coisa pode ser motivo para gerar encontros e rituais. Você pode combinar com os amigos de ir até a praça plantar uma árvore – mas, sendo um rito patafísico, isso poderia ser feito de um modo mais meticuloso, com as pessoas criando danças temáticas ou escrevendo poemas que só contenham palavras com a letra “A”, por exemplo.

Os “fieis” dessa igreja podem combinar passeios que seriam chamados de “caminhadas peripatéticas”, onde são cumpridos rituais como contar quantas casas e prédios amarelos você encontra pelo caminho, até que, no fim do trajeto, o número total contabilizado pode inspirar uma aposta na loteria ou um número de biscoitos para cozinhar. Aqui, o limite para as tarefas e rituais é determinado pela imaginação de cada um. Existem motivos quase infinitos para inspirar o encontro dos seguidores patafísicos.

Eu quis concluir esse ensaio trazendo a absurda igreja da patafísica por um motivo simples: os motivos para se reunir pessoas podem ser bem mais leves e despretensiosos do que pensamos.

A ideia que se tem de uma sociabilidade de esquerda varia entre extremos: pode ser uma estrutura de sindicato, ou um grupo de estudos, ou ainda um botequim dos mais dionisíacos. Nada disso é verdade, mas não deixa de ser verossímil. Mas o pior é aquela típica pessoa de esquerda que, crendo-se militante, acha que sociabilizar significa dizer “sente-se aí, seu néscio, que eu vou te explicar o primeiro capítulo de O Capital em detalhes!”.

No fundo, se as pessoas precisam de um pretexto para estarem juntas, é preciso que o motivo desse encontro consista mais em unir do que separar. É importante aqui criar ecossistemas baseados em respeito mútuo, diálogo e acolhimento das diferenças. Esse último aspecto, sobretudo, tem sido apontado por muitos críticos da esquerda como um dos principais entraves do discurso progressista. Através do identitarismo, nichos e grupos específicos muitas vezes parecem mais dispostos a fomentar brigas dentro do campo da esquerda do que circular em um ambiente comum, onde todos podem trocar ideias e experiências sem culpa, de maneira horizontal e fraterna.

Se a proposta da igreja satânica parece tão ou mais inverossímil do que a igreja da patafísica, meu intuito aqui foi provocar os leitores para sonharmos juntos com novos espaços em que a responsabilidade social possa representar um novo modelo de comunitarismo progressista. Sei que não basta apenas algo dessa natureza para sanar a falta de consciência de classe no Brasil contemporâneo, mas fico imaginando se a experiência de espaços comuns não significaria uma semente de mudança positiva para a esquerda nacional.

Agradeço a leitura dessa edição da newsletter Além da Letra – Rafael Senra! Esse post é público, portanto fique a vontade para compartilhar.

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Uma crônica disfarçada

Passeando e pensando a partir das ruas de Macapá

Tenha isso em mente quando sair para caminhar em Macapá: vá muito cedo ou vá relativamente tarde. Caso contrário, a sensação será a de ter o sol preso na etiqueta da sua camisa, como se o astro-rei te seguisse muito de perto. Tenho dificuldade para abrir mão das manhãs em prol de algo físico, já que, nas primeiras horas do dia, rendo bastante nas tarefas de trabalho ou na escrita. As caminhadas acabam ficando quase sempre para depois das 18h.

Eis que saio pelas avenidas amplas do meu bairro (para um mineiro do interior, espanta como algumas ruas em Macapá podem ser tão largas), desfrutando da brisa sempre forte e bem vinda, típica da cidade. Sempre que avisto tal combinação de vermelho e verde no pôr do sol, penso que é Deus implorando para que um novo Turner ou Monet surja nas florestas amazônicas e imortalize esse espetáculo.

Enquanto atravesso um cruzamento de movimento até modesto em pleno horário de pico, penso que o fim de semana está se aproximando, e preciso fazer o texto da newsletter. “Não seria engraçado se o texto fosse uma crônica sobre a própria newsletter?”, penso. Um artifício literário daqueles. Calma lá, Rafael, pega leve. Ainda não existe categoria no Jabuti para quem escreve nesse suporte. Considere que seus leitores trabalharam por toda a semana, e a última coisa da qual precisam nesse sábado é de alguém que pavoneia-se com a própria literatura.

Passo pelo lava-jato “Pulo do Gato”, onde sempre deixo meu carro para limpar vez ou outra. Hoje o dono (conhecido como “Gato”, claro) não está lá; mas vejo um gato de verdade me encarando (de acordo com o dono, é o mascote da empresa). O passeio alto me leva até o muro da Escola Municipal Rondônia, identificável pelas árvores frondosas cujas copas invadem a calçada com a mais generosa das sombras. É uma pena que não defendam um plano diretor em Macapá que permita corredores arbóreos como esse. Os antigos dizem que a capital era bem mais fresca na época em que mais árvores estavam de pé. E as pessoas no mundo inteiro achando que ter um novo Iphone é sinônimo de “evolução”…

Volto a pensar na newsletter quando sou obrigado a esperar o intenso fluxo dos carros na Avenida Jovino Dinoá. Tem sido um trabalho árduo escrever um texto por semana. As vezes, recorro à safadeza, e pego textos escritos há uns meses para dar uma “polida” neles e publicar. Claro que, não raro, essa “polida” dá tanto trabalho quanto escrever um texto novo. E tem um problema. Em termos de continuidade, essa estratégia impede que eu crie uma narrativa mais ampla entre os textos – trazendo conteúdos que dialoguem com o que publiquei na semana anterior, por exemplo. Mas tudo bem, afinal, a Netflix faz isso melhor do que eu.

Passo pela casa da vizinha dos periquitos. Eles “falam” tão alto que um desavisado pode chamar a polícia achando que é briga. A senhorinha que toma conta deles está sempre sentada na cadeira de plástico com olhar sorridente, enquanto a dupla de penas verdes desfila seu escândalo habitual. Atento ao colóquio dos bichinhos, quase pereço diante de um ciclista apressado e pouco hábil com seu veículo, mas consigo desviar a tempo.

Na verdade, a experiência de escrever semanalmente em uma newsletter tem sido nova para mim. Até por não ser jornalista de formação, nunca lidei com a incumbência de produzir conteúdo regularmente. É legal conseguir manter essa regularidade, mas devo confessar que não fui capaz de ajustar a temática geral das newsletters. Dizem que as mais bem sucedidas são dedicadas à um nicho específico. E não as que publicam um texto sobre o Pink Floyd em uma semana e sobre o Leonardo di Caprio na outra.

Enquanto faço o nome-do-pai na frente da Paróquia Jesus de Nazaré, fico pensando se não seria melhor escrever crônicas semanais em vez de ensaios. “Por que raios (sim, raios, e não diabos, estou na frente de uma igreja!) achei que escrever textos reflexivos e ensaísticos no meu tempo livre da universidade seria uma boa ideia?”, pensei. A verdade é que, em meus projetos de escrita, eu sempre ajo como os personagens dos faroestes de Sérgio Leone: atiro primeiro e penso depois.

Na mais pura covardia e cara de pau, considero então a hipótese de escrever um ensaio disfarçado de crônica. Logo descarto a ideia, parece uma falta de respeito. Depois, volto a considerar a possibilidade. Os bons leitores gostam de ser conduzidos a lugares insólitos. Isso é diferente de enganá-los, como fazem alguns autores negacionistas. A quebra de expectativas só é ruim quando a agência de turismo trocou a sua passagem com destino ao Caribe e te enviou para a Patagônia, achando que você ia preferir se refrescar no sul dos Andes. Já na literatura, a subversão pode ser uma coisa boa.

Quando passo em frente ao Seminário São José de Macapá, ouço ao longe a conversa de uma senhora com seu bebê de colo e as amigas (parentes?), todas soando como se falassem em francês ou até mesmo em créole (língua materna de muitas pessoas da Guiana Francesa, região vizinha ao Amapá). Não consigo entender muita coisa. Acho graça do fato de que estou naquele exato momento refletindo sobre o ato de uma pessoa se fazer entender – por escrito ou não.

Parece uma coisa mesquinha ou corporativa demais pensar que um projeto de newsletter precisa ampliar seu público de leitores para ser uma experiência bem sucedida. Por outro lado, penso que todo artista e autor precisa buscar o aperfeiçoamento constante de seu ofício, e isso não diz respeito apenas a escrita em si, mas também aos meios de fazer circular o que produz.

A palavra-chave que estou procurando aqui é essa: vocação. Taí um conceito fora de moda nesse mundo cético e neoliberal, onde tanta gente está procurando formas de ganhar dinheiro, não importa para que finalidade: sobrevivência ou ostentação. Quase todo mundo acha que possui menos grana do que devia, e isso leva a priorizar o vil metal em detrimento da vida em si. Espertos são os que entenderam essa armadilha e encontraram rotas de fuga.

Em outros tempos, já me senti meio deslocado ao sustentar a crença na vocação, ao defender que você pode ser mais pleno na vida quando exercita o seu dom e o oferece para a comunidade. Dito assim, parece algo cafona, bicho-grilo, e até messiânico. Mas é uma ideia que me move, e pela qual não estou disposto a me desculpar. Você pode acreditar na vocação mesmo que não seja a partir de algum tipo de dogma ou discurso religioso. Talvez seja apenas uma intuição que assola sua mente em algumas horas do dia, e depois se esvai quando você lembra das contas a pagar. Não importa de onde venha a ideia: ela só precisa fazer sentido.

Enquanto caminho pela borda da ciclovia da Avenida Hamilton Silva, na contramão do fluxo dos carros, penso que talvez o formato da newsletter seja mais adequado para crônicas em vez de ensaios. Ainda bem que não tenho patrões forçando minha fidelidade a uma linha editorial qualquer. Ao modo dos artistas psicodélicos dos anos 1960 ou dos alquimistas do período helenístico, posso me dar ao luxo de experimentar com o que faço. Afinal, a atividade de escrita provavelmente é mais segura do que, sei lá, produzir fraldas ou airbags (“hah! Diga isso para Jean-Paul Marat, que escrevia para o jornal L’Ami du peuple – O Amigo do Povo –, publicação política que insuflou os parisienses a seguir adiante com a Revolução Francesa”, diz uma voz na minha cabeça). 

Enfim, mesmo sem conclusões muito coerentes, viro na Avenida Padre Manoel da Nóbrega e traço a rota de volta para casa, feliz por ter um esboço de tema para brincar.

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Quando o realismo puxa a espada

Em tempos de decolonialidade, identitarismo e pós-modernidade, o que sobrou para a literatura de fantasia?

Certo dia, uma autora que sigo nas redes sociais publicou um post comentando o livro Animal, da escritora e jornalista norteamericana Lisa Taddeo. Em sua breve e informal resenha, a autora destacava (aqui, escrevo com minhas palavras) a qualidade de se tratar de um texto escrito sob a perspectiva de uma mulher potente, que não pede desculpas para ninguém, e que diz com todas as letras o que realmente pensa sobre os homens (não são pensamentos lisonjeiros). A autora do post arrematava com a afirmação de que os homens deveriam parar de ler histórias com “elfinhos” e ler as obras de Lisa Taddeo.

O espantalho que ela traz para a punch line no fim do post não é outro senão as atualizações do gênero épico para a contemporaneidade, no que convencionalizamos chamar de fantasia (não confundir com o fantástico ou o realismo fantástico, que são bem diferentes). No século XX, autores como J.R.R. Tolkien definiram o protótipo dessa recriação temática, que se tornaria um filão rentável e popular em diversas mídias ao longo dos anos. Seja no audiovisual, quadrinhos, ou literatura, as histórias de fantasia rendem alguns dos mais lucrativos produtos da indústria do entretenimento recente.

Eu consigo entender porque alguém reduz a fantasia ao rótulo de histórias de “elfinho”. Para começo de conversa, existe o preconceito de que seriam narrativas de caráter infantojuvenil, constantemente vistas como “coisa de criança” aos olhos dos supostamente “verdadeiros” especialistas em crítica literária. Além disso, algumas das obras tradicionais ou mais conhecidas desse gênero trazem valores que podem ser interpretados como sendo conservadores. Se pegarmos os autores da primeira metade do séc. XX, como Tolkien, C.S.Lewis e outros, encontraremos uma visão de honra e de ética que podem ser lidas como antiquadas (sem contar que, apesar da inspiração nos mitos pagãos do Norte da Europa, Tolkien e Lewis eram cristãos inveterados).

A fantasia do século XXI é bem menos restrita nesse recorte moral (quem assistiu a série televisiva de Game of Thrones percebeu isso muito bem). Mas, para muitos espectadores e leitores do sexo masculino, o que realmente importa envolve menos os códigos de conduta ou as questões morais, e sim os personagens masculinos com seus uniformes de guerreiro e espadas no melhor estilo Conan o Bárbaro. Creio que essa é a chave para decifrar a crítica que li no post. Pois, ainda que o gênero de fantasia tenha tido uma bem-vinda renovação de público nos últimos anos, seus detratores não são poucos.

Na minha trajetória de leitor literário, creio que fiz o oposto do que a autora recomendou: abandonei as histórias de “elfinho” e mergulhei em livros realistas e militantes. Aos 21 anos de idade, iniciei o curso de Letras, e a literatura de fantasia não era mencionada nas nossas aulas nem como nota de rodapé.

Devo dizer que eu não era um leitor assíduo de obras de fantasia. Venho de uma família de classe trabalhadora do interior de Minas Gerais, e cresci em uma era pré-internet, ou seja, meu acesso a esse tipo de livros não era tão amplo e facilitado quanto eu gostaria. Meu contato mais considerável com esse gênero foi através de quadrinhos que conseguia encontrar nas bancas.

Mas vejam só a ironia. Aos 22 anos, eu estava no terceiro período de Letras, e as demandas do curso me levavam a estudar pelo menos dois tipos de obras: as do cânone literário (romances, contos e poemas ditos “clássicos”, todos esses que conquistaram lugar cativo na história da literatura) e também obras que propunham um “contra-cânone”, na tentativa de reabilitar a literatura de países e regiões que foram ou são colônias, bem como obras de autores que escreviam sobre minorias representativas (que discutiam questões de gênero, raça e classe). Pois foi justo nesse período que tive a mais intensa experiência de leitura com uma obra de fantasia.

Lembro que morava em um bairro chamado “Fábricas”, que, em outros tempos, foi um reduto de operários das empresas têxteis de São João del Rei. Na época, quase todas as casas eram feitas no mesmo modelo, o que dava um aspecto de subúrbio americano ao lugar. Várias dessas casinhas idênticas eram repúblicas estudantis.

Certo dia, eu e um amigo visitamos a república de alguns amigos, e fomos apresentados aos novos moradores: dois irmãos que adotavam um estilo “gótico” ou dark, e pareciam ter saído diretamente de algum club britânico de Manchester ou qualquer cidade do auge do pós-punk dos anos 80. Apesar de não ter estreitado uma amizade considerável com os irmãos, eles compartilharam um presente fundamental para minha formação cultural: um CD de MP3 com algumas músicas de um trio escocês cujo nome demorei para memorizar.

Foi a primeira vez que ouvi o som mágico dos Cocteau Twins. Aquele CD trazia quase todo o disco mais famoso dos criadores do dream pop: Treasure. Tinha também algumas músicas do álbum que se tornaria o meu preferido deles, Four Calendar Cafe.

Por alguma coincidência feliz do destino, nessa mesma época eu tinha ganhado de presente do meu pai o livro Stardust, escrito por Neil Gaiman e ilustrado por Charles Vess. Quando comecei a ler, liguei a trilha dos Cocteau Twins, apenas para descobrir que aquelas músicas pareciam ter sido feitas para o livro de Gaiman. Essa combinação da narrativa ilustrada de fantasia com as músicas etéreas dos CT trouxeram a mais profunda imersão que já experienciei com obras de arte. Eu passava horas lendo, com as músicas no repeat, e, quando acabava, é como se eu tivesse tido uma verdadeira alteração de consciência, como se eu estivesse dentro da história.

O enredo é centrado no protagonista Tristan Thorn, um jovem que mora em um vilarejo de estilo medieval, que vive entediado como quase todo adolescente, até a noite em que avista uma estrela cadente caindo dentro de uma floresta cujo acesso é proibido. Thorn atravessa o muro de pedra que separa sua realidade sem graça de um mundo mágico onde existem bruxas, fadas, piratas em navios voadores – e, o principal, onde uma estrela cadente pode ser uma mulher. Estruturalmente, é um típico romance de formação (bildungsroman), assim como o são Demian, de Hermann Hesse, ou O Apanhador no Campo de Centeio, de Salinger, mas que utiliza símbolos e motivos do gênero de fantasia.

Lembro vividamente de um fim de semana em que devorei muitas das páginas enquanto ouvi o CD dos Cocteau Twins umas mil vezes. Estava na casa dos meus pais, em Congonhas, e saí para caminhar sem saber se buscava algum vestígio de realidade ou se continuava saboreando aquele universo de imagens mágicas. Era época de outono, e cada árvore ou ipê típicos do interior de Minas pareciam com as espécies ancestrais da floresta mágica de Stardust.

Mas todo esse encanto durou pouco. Meses depois, acabei emprestando o livro de Gaiman, e nunca mais o consegui de volta (tenho em PDF hoje em dia). Não me importei tanto na época, pois, com o avançar do curso de Letras, acabaria negligenciando os livros de fantasia como sendo obras de entretenimento sem muita profundidade. Para fazer média com meus professores e meu meio social, tratei de ler apenas obras pertencentes ao cânone da alta literatura ou ao contra-cânone dos Estudos Culturais. Com ênfase, claro, em obras que hoje em dia chamamos de decoloniais, várias delas com tramas naturalistas e realistas, todas com forte apelo social e político.

Da maneira como enfatizo as obras lidas no curso de Letras, fica parecendo que não tenho muito apreço por elas. Eu gostava, e ainda gosto. O que quero ressaltar aqui, na verdade, é como o gênero de fantasia apresenta também suas qualidades e pontos fortes. No fim das contas, o valor estético e ideológico das histórias de fantasia não precisa ser posto à prova através de comparações forçadas ou de estereotipias.

Ainda hoje, continuo lendo e estudando obras canônicas, mas também reintegrei leituras de fantasia na minha rotina, e, em 2023, até cheguei a publicar um artigo sobre Tolkien em uma prestigiada revista acadêmica, marcando uma inédita aproximação acadêmica com os estudos de fantasia.

Como eu disse antes, entendo porque um leitor do cânone pode menosprezar as obras de fantasia. O pacto de verossimilhança proposto nessas histórias inclui seres como dragões, magos e, claro, os tais “elfinhos”, o que parece esvaziar qualquer tentativa de pensar nesses textos como panfletos políticos ou militantes de algum modo.

Claro que, na minha opinião, devemos debater e relativizar a lógica estrutural do machismo, e, corroborando a autora que citei no início do texto, devemos sim ler escritoras como Lisa Taddeo. Mas isso não implica em menosprezar as histórias de fantasia. Essas obras trazem uma maneira diferente de cultivar laços com nossa ancestralidade, com toda uma simbologia que remete ao mundo natural, e que traz ecos profundos da galeria mítica que habita nosso inconsciente coletivo.

Sei que alguns desses conceitos parecem risíveis para qualquer adepto das teorias pós-modernas ou identitárias. Mas sou dos que acreditam que as histórias de fantasia – ou os contos de fadas, a epopeia moderna e outras variantes – podem nos oferecer conteúdos ricos e relevantes em vários sentidos também.

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