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Sobre Rubem Alves

Já perdi a conta de quantos emails recebi com textos de autorias completamente duvidosas, pastiches que teriam sido supostamente assinados por escritores, poetas e cronistas diversos. As piadas (mesmo aquelas com rudeza de botequim) atribuídas ao Veríssimo; os poemas de sentimentalismo a flor da pele seriam de Clarice ou Caio Fernando Abreu; as crônicas mais contundentes por Arnaldo Jabor, e por aí vai.

Mas não me recordo de ter recebido nenhum desses arremedos literários com a assinatura de Rubem Alves. Fico aqui especulando os motivos. Diferente de autores como Paulo Coelho, Alves era muito bem sucedido ao aliar elegância e simplicidade. Suas frases parecem as pinceladas de pintores experientes, que só depois de uma longa caminhada da alma e da técnica alcançam um traço de encantadora espontaneidade.

Enfim, não vejo como negativo essa história de uma obra literária apresentar ganchos e repetições que facilitem imitadores. Cada estilo é um mundo a parte, e funciona a seu modo. Veríssimo é inimitável, apesar de seu texto jocoso e (falsamente) acessível incitar os falsários a tentar. Rubem Alves talvez tenha sido poupado das clonagens devido à sua sobriedade e sua lucidez, aliadas também ao horizonte de leveza e beleza que mirava sempre.

O educador e filósofo é daquela qualidade de pensador que conseguiu ser acessível sem apelar a estereótipos. Tanto em sua postura de homem público quanto na essência de seus livros e declarações, a porção vaidosa de sua humanidade ficou em segundo plano, privilegiando sua mensagem de validade inexpirável. Rubem Alves flertou com a eternidade ainda em vida, e tornou-se universal para sempre.

Sobre Máscaras

Mais do que as experiências passageiras, como colônias de férias ou paqueras de verão, esses anos todos de vida universitária tiveram uma profunda influência na minha visão de mundo. Comecei a prestar mais atenção em alguns detalhes do cotidiano que eu ignorava, e, além de notar, tentar estabelecer conexões entre eles e uns tantos outros assuntos e ideias. Surgiu aí também uma chatice, de querer tornar complexo até mesmo fenômenos que nem sempre o são – efeitos colaterais de se pensar demais.
 
Passei a ter uma relação mais séria também com o que acontece fora das salas de aula. Um compromisso com as coisas boas da vida, e o desejo de cumprir as tarefas de maneira satisfatória, de ser presente quando é necessário.
 
Talvez eu tenha pago um preço por isso, na perda da espontaneidade de outrora, substituída por uma autoconsciência e uma definição do que me cabe ou não fazer. Lembro de Paul McCartney dizer, em uma entrevista, da diferença do Elvis Presley antes e depois do exército. Ao retornar a carreira, “the pelvis” parecia mais ensaiado, havia em seu olhar algo de hesitação, além da composição de um personagem que pudesse figurar bem nas fotos. Nada diferente das caretas e gestos exagerados do próprio Paul, hoje em dia – o que, dada a beleza da versão madura de McCartney, mostra que o processo não é tão negativo quanto parece.
 
Acho que, em certa medida, a vida adulta necessita de máscaras; mas se é para vestí-las, que sejam verdadeiras, que possam exprimir alguma verdade sobre nós mesmos. E, na verdade, a perda da espontaneidade de antes seria, não uma perda, mas apenas um eixo que precisa ser apertado novamente. O que é a vida senão um palhaço de quermesse, que equilibra os pratos girando sobre varetas, sorrindo? 

Cyro dos Anjos profetiza a Bossa Nova

Li apenas dois livros de Cyro dos Anjos, mas isso bastou para que o considerasse meu escritor brasileiro preferido (até porque li mais da metade da sua obra ficcional, restando apenas o romance derradeiro Montanha).

Sua narrativa é introspectiva, com tons de crônica, polvilhada com dados comentados sobre vários episódios e figuras da cultura ocidental, tudo isso costurado por uma escrita refinada e também clara.

Amanuense Belmiro é sua obra prima, mas Abdias tem inúmeros méritos. E um dos que mais me impressionaram (apesar de ser bem sutil, a princípio) foi o fato de Cyro, através de seu alter-ego Abdias, fazer uma verdadeira profecia sobre o surgimento da bossa nova, movimento musical que acabou por batizar e se compor como um gênero à parte.

Vinicius-Jobin-Joao
Vinicius, Tom e João Gilberto, década de 50

O romance data de 1945, enquanto que o tiro de largada para a bossa nova foi um compacto com duas músicas de João Gilberto, lançado quase quinze anos depois, em agosto de 1958.

O que Cyro faz, dentro do romance, é uma breve análise do samba, onde ele elenca pontos que o desagradam no estilo, enquanto vislumbra possibilidades que cabem como uma luva no intinerário bossanovista.

Na cena criada por Cyro, Abdias aparece com um ponto de vista bem conservador sobre o samba.

Talvez ele se referisse, sem muito conhecimento do tema, aos sambas-canção carnavalescos, com uma repetição incessante de trechos específicos, harmonias previsíveis e letras com apelo popular.

Talvez não conhecesse os sambas de Noel Rosa e Ary Barroso, Adoniran Barbosa, e outros que já estavam em atividade na época do romance (Noel, inclusive, já havia falecido há alguns anos).

Talvez Cyro dos Anjos estivesse apenas compondo seu personagem, um amante da música clássica e da cultura erudita (interesses também de Cyro, pelo que se sabe).
 
De início, iria citar apenas o trecho específico sobre o samba. Mas decidi reproduzir aqui a página quase integral, que de certa forma rodeia o tema, e que demonstra bem a escrita fluida, saborosa e elegante do autor:

    “Estávamos numa segunda-feira de carnaval, e uma camioneta com alto-falante rodava pela rua, derramando no ar sambas fanhosos, entre anúncios de pastas dentifrícias.
     
    Chamei a atenção do Dr. Azevedo para a invasão crescente do samba e condenei o apoio que lhe davam alguns intelectuais. Prestigiando aquela manifestação primária da criação musical e conferindo-lhe foros de cidade, influíam para que o povo cada vez mais se distanciasse da boa música.
     
    – O rádio é talvez o maior responsável por isso, concordou.
     
    E contou-me, a propósito, que, para se ver livre de uma família de fanáticos radio-ouvintes, que faziam o aparelho funcionar o dia inteiro, teve de comprar a casa vizinha.
     
    – Como vê, eu, velho democrata, tive de procurar solução no espírito latifundiário e imperialista da Glória. Mas não havia remédio. Quase me punham doido. E quando ouviam irradiações de partidas de futebol? Estas são de enlouquecer!…
     
    O assunto excitara-o. Continuou, animado:
     
    – Agora, não me apanham mais. Do contrato de locação faço sempre constar uma cláusula segundo a qual o locatário não pode utilizar-se do rádio senão umas duas horas por dia. E são sempre as horas em que não estou em casa.
     
    Voltando à questão do samba, disse, depois, que talvez estivéssemos exagerando o mal que decorria de sua incrementação, através da atividade radiofônica. Quem sabe essa música elementar não seria preparatória de formas musicais superiores, no futuro? À semelhança do que já faziam alguns compositores brasileiros da atualidade, outros talvez viessem, mais tarde, extrair da ganga pobre do samba temas para concepções mais ricas…

De fato, João, Tom e Vinicius o fariam. Mas a bola já tinha sido cantada antes, obscuramente, no rodapé desse belo romance do mineiro de Montes Claros.

Historinha real

Outro dia, estava eu a andar de bicicleta, quando leio a placa numa casinha simples: “vende-se chup-chup. 50 centavos com suco, 80 centavos com leite”.

Bateu uma nostalgia danada da infância e pré-adolescência, quando eu e meus amigos comprávamos chup-chup nas casas da vizinhança, as vezes chamando até mesmo de madrugada, fizesse frio ou calor. Tinha de morango, chocolate, coco, meu preferido era um rosa de creme holandês, cujos ingredientes ainda hoje me são desconhecidos, mas o sabor permanece memorável.

Parei como um menino em frente a casa. Enquanto contava as moedas animado, me peguei pensando “mas, peraí, com que água eles fazem o chup-chup? É feito com suco de pózinho, esses vagabundinhos de marca genérica? Polpa de fruta é que não é! E chup-chup de leite? Mas eu não tenho tomado leite! E se eu passar mal?”

“Ah, Rafael, você está ficando velho”, constatei enquanto voltava a pedalar.

A Arte como Caminho Espiritual – um breve ensaio

Sou um grande admirador do filósofo britânico Paul Brunton. Certa vez, li um aforisma dele que nunca mais esqueci, e transcrevo aqui de memória (acrescentando apontamentos meus).
 
Dizia ele que a religião é dispensável para o verdadeiro artista. Não que esse artista não possa ter uma; mas é que a arte pode servir como um caminho espiritual tão válido quanto a religião.
 
Se for um artista empenhado em executar uma obra cada vez mais próxima daquilo que sua alma sopra pra si mesmo (e não um embusteiro em busca de dinheiro fácil), então passos serão dados em direção a uma espécie de redenção.
 
Essa ideia soa meio messiânica, mas dois tipos de pessoas irão compreendê-la: os artistas – ateus ou não -, que algum dia produziram algo que lhes pareceu profundamente sincero; e as pessoas que, em dado momento, sentiram uma identificação de alma com uma obra artística.
 
E esse é o ponto que acho interessante em relação a caminhada espiritual da arte: as obras funcionam como faróis, como vislumbres de algo maior, algo que pode-se chamar de Deus, de paraíso, ou algo inominável. A verdadeira obra de arte pode inspirar todo tipo de pessoa (quem faz e quem aprecia) a se abrir para uma transformação interna.

“Venha, meu amor”: a história da canção celta “Siúil a Rún”

Uma canção chamada Shule Aroon e outra chamada Johnny has Gone for a Soldier. Uma simples audição revela diversas coincidências entre ambas. Na verdade, apesar dos títulos e das melodias levemente diferentes, todas elas derivam da mesma canção, chamada Siúil a Rún, um antigo tema tradicional da Irlanda, de autoria desconhecida.
 
Nos últimos anos, Siúil a Rún estrapolou as fronteiras da Irlanda, e se popularizou ao figurar no repertório de megaespetáculos como o do grupo feminino Celtic Woman, ou o show de dança Riverdance. Mas alguns anos antes, de forma nem muito tímida, as diversas versões e adaptações da canção já haviam sido interpretadas por diversos nomes: desde o grupo Clannad (dos familiares da cantora Enya, conhecidos como os “embaixadores musicais da Irlanda”) até o cantor americano de folk music James Taylor, passando por artistas como Pete Seeger, Mary Black e Bonnie Dobson.
 
 
 
O título original, “Siúil a Rún”, no idioma gaélico, quer dizer “vá, meu amor”. Apesar do refrão cantado em gaélico, as estrofes estão em inglês. A mistura é justificada pelo fato de que ambos são os idiomas oficiais da República da Irlanda (nação que ocupa boa parte da Ilha da Irlanda, dividida entre a República e a Irlanda do Norte). O idioma inglês entrou na ilha quando houve a invasão de mercenários cambro-normandos, enquanto que o “gaélico irlandês” (Gaeilge) descende da história dos povos celtas que formaram o país. O fato de se misturar esses idiomas distintos em um mesmo contexto talvez veicule a canção à uma forma poética conhecida como “macarrônica” (macaronic, algo parecido com o que nós brasileiros nos referimos quando alguém fracassa em falar um idioma estrangeiro, incorporando sem querer elementos da própria língua).
 
A letra é cantada do ponto de vista de uma mulher, que lamenta a ida do seu amado para o exército. Essa camada superficial de significado emerge facilmente em uma audição rápida. Contudo, o exercício de se rastrear as origens da canção pode revelar pistas meio que obscuras. Há quem diga que Siúil a Rún se refira à Revolução Gloriosa, que afetou todo o Reino Unido no século XVII. Mas outras possibilidades apontam para o fato de que a canção teria sido composta no século XIX, emulando um estilo mais antigo. Nada é certo em relação a isso. De todo modo, é possível que ela tenha sobrevivido ao teste do tempo da mesma forma que diversas canções antigas da Irlanda: várias delas eram traduzidas integral ou parcialmente para o inglês, algumas vezes mantendo apenas o refrão no idioma original gaélico-irlandês. Existem até mesmo casos em que as traduções acabaram gerando versos praticamente sem sentido!
 
O mais interessante sobre Siúil a Rún e suas versões é que as diferenças entre elas pode dizer muito sobre seu contexto original. Na versão americana da música (que se tornou muito popular nos Estados Unidos na época da Guerra Revolucionária Americana do séc. XIX), o personagem do jovem segue para a guerra; mas na versão irlandesa, o mesmo jovem segue por um difícil e voluntário exílio. Há quem diga que essas variações seriam fruto da própria história da Irlanda, e se referem à invasão dos ingleses: os irlandeses teriam sido pressionados pelos britânicos a se alistar no exército, caso contrário seriam exilados para sempre.
 
A versão americana se vincula à original ao manter trechos da letra irlandesa, mas além de ter uma melodia diferente, há o acréscimo de uma frase que modifica todo o sentido, a ponto de ter se tornado seu novo título. “Johnny Has Gone for a Soldier” marca a decisão do personagem de enfim seguir para a carreira militar (Johnny foi se tornar um soldado, ou algo do tipo).
 
 
Uma versão intermediária entre Johnny e a suposta original Siúil a Rúnchama-se Shule Aroon – apenas uma grafia diferente do termo gaélico. A melodia é semelhante à Johnny, mas no lugar da frase do título, está “iss go jay too mavoorneen slahn”, extraída do original gaélico (também escrita como “Is go dté tú mo mhuirnín slán”).
 
 
A canção é mencionada em alguns clássicos da literatura. Em O Mestre de Ballantrae, de Robert Louis Stevenson (o mesmo autor de A Ilha do Tesouro e O Médico e o Monstro), o protagonista a assobia para impressionar a mulher de seu irmão mais novo, e em seguida faz comentários depreciativos sobre seu significado, debochando dos exilados jacobitas na França que choravam ao ouvir sua letra.
 
Uma aparição ainda mais notável de Siúil a Rún está no célebre romance Ulisses, de James Joyce. No capítulo intitulado Ítaca, Stephen Dedalus está na cozinha de Leopold Bloom, e cantarola a canção para seu amigo, que responde cantando uma canção em hebraico para Dedalus. A letra de Siúil se vincula a um tema que aparece em todo o livro, a respeito da perda da linguagem, da traição, e de mulheres que vendem a si mesmas.
 
Segue a letra original (pelo menos a mais antiga que se tem notícia) e suas variações:
 
Siúil, siúil, siúil a rún
Siúil go socair agus siúil go ciúin
Siúil go doras agus éalaigh liom
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
I wish I was on yonder hill
‘Tis there I’d sit and cry my fill
And every tear would turn a mill
Is go dté tú mo mhuirnín slán
 
I’ll sell my rock, I’ll sell my reel
I’ll sell my only spinning wheel
To buy my love a sword of steel
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
I’ll dye my petticoats, I’ll dye them red
And round the world I’ll beg my bread
Until my parents shall wish me dead
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
I wish, I wish, I wish in vain
I wish I had my heart again
And vainly think I’d not complain
Is go dté tú mo mhúirnín slán
 
But now my love has gone to France
to try his fortune to advance
If he e’er comes back ‘tis but a chance
Is go dté tú mo mhúirnín slán

Uma tradução (em inglês) para o refrão em gaélico seria:

 
Go, go, go my love
Go quietly and peacefully
Go to the door and flee with me
And may you go safely my dear.
 

Uma versão alternativa (ainda irlandesa) da letra inclui esses versos:

 
His hair is black, his eye is blue
His arm is stout, his word is true
I wish my darling I was with you
‘s go dtéigh tú, a mhúirnín, slán
 
I watched them sail on Brandon Hill
It’s there I sat and cried my fill
And every tear would turn a mill
‘s go dtéigh tú a mhúirnín, slán
 
I wish the King would return to reign
And bring my lover home again
I wish, I wish, I wish in vain
‘s go dtéigh tú a mhúirnín, slán
 
E, aqui, alguns versos adicionais da versão em inglês:
 
I sold my flax and I sold my wheel
to buy my love a sword of steel
so it in battle he might wield
Johnny’s gone for a soldier
 
Oh my baby oh my love
gone the rainbow gone the dove
your father was my only love
Johnny’s gone for a soldier

Deus, essa epiderme

Para os crentes, a oração é a construção de uma linha direta com Deus, enquanto que, para os ateus, é um tempo perdido e nada divertido. E no meio dessas perspectivas, existem outras, como os que oram por medo do inferno ou motivados por desejos (as famosas “orações pedintes”), mas não é nessas searas que quero me meter.
 
Esses dias, fiquei pensando no quanto de química existe na oração. Afinal, tudo que fazemos ativa e desativa substâncias corpo afora; desde uma olhada tímida para a lua até o ato de correr na maratona de são silvestre. Essas coisas objetivas que fazemos inevitavelmente despertam químicas, talvez desconhecidas por nós, que percorrem as tantas rotas do nosso pequeno grande organismo.



Acreditamos ter controle sobre essas químicas. Corremos e fazemos amor porque buscamos endorfina. Saltamos de uma ponte amarrados numa corda de rapel querendo adrenalina. Só que nem sempre temos o controle esperado. Você se mata de estudar para aquela provinha cabeluda, e, veja só, acaba ficando tão nervoso que erra tudo! Ou perde a noção do que fazer quando encontra um tigre no meio da rua de casa (digamos que ele tenha fugido do zôo, só para deixar o exemplo menos surreal).
 
De certa forma, orar envolve não um controle, mas talvez um direcionamento dessas químicas, por ser um exercício consciente de amor ao próximo e de louvor. Em um mundo tão objetivo e materialista, o ato de orar pode até ter algo de pitoresco, mas é algo que libera substâncias em nossos corpos como qualquer outra atividade do nosso cotidiano.
 
Nessa perspectiva, pode-se pensar que ter fé e incluir a prática espiritual nas nossas vidas pode ser tão pragmático quanto comer um pacote de biscoito. Tudo bem que é algo que você possa anotar na agenda e fazer, mas, convenhamos, é um bocado difícil abrir mão do cineminha ou da balada para passar alguns minutos ou horas orando pela humanidade. É um pragmatismo pouco usual, que só parece fazer sentido quando se tem fé. 
 
 

Mas, para não fugir do ponto nevrálgico das minhas reflexões, talvez hajam químicas que só a oração libera em nosso corpo… ou não?
 
Bem, não. Muitas pessoas que tomam LSD alegam ter sentido a presença de Deus. Na verdade, já houveram ashrans de monges e líderes espirituais que usavam o LSD para acelerar um processo de autoconhecimento e de prática religiosa. Como leigo, imagino que o ato de tomar ácido lisérgico possa liberar em nós uma enorme quantidade de químicas semelhantes às do momento de uma oração sincera. Só que tanta facilidade em ir de encontro até o Criador pode custar caro, uma vez que o próprio corpo e a mente do sujeito quase nunca estão preparadas para um vislumbre tão magnífico. A prática do ioga, por exemplo, tem como um dos objetivos preparar corpo e mente para o instante derradeiro da iluminação, quando o discípulo torna-se um bodhisattva. O equivalente ao caminho da oração para o catolicismo, que leva o indivíduo à santidade. Por “preparar”, me refiro a um fortalecimento do ego – corpo e mente da pessoa cada vez mais fortalecidas, até o instante em que o próximo passo seja abandonar-se para adentrar ao nirvana ou ao céu.
 

A ciência tem cada vez mais flertado com a espiritualidade, desde a física quântica até a descoberta da dinâmica do Bóson de Higgs. Não me atreverei a escrever sobre essas áreas que pouco conheço, mas acredito que, quando se abre para tais fenômenos, o cientista está cada vez mais próximo do artista ou do monge – só que o paradoxo é que ele não deixa de ser cientista. Só se amplia o escopo e a função.
 
 

Jung (sujeito extremamente empírico, mas que o senso comum cristalizou como um místico) dizia que sua autobiografia “Memórias, Sonhos, Reflexões” frustraria leitores que procurassem fatos, datas, e informações muito objetivas (na psicanálise junguiana, se diria que é um perfil típico de um leitor “extrovertido”). Porque a trajetória dele é para dentro, é interna, introspectiva. Jung buscava entender não só o simbolismo do elemento sagrado e espiritual, mas também sua organicidade (afinal, era psicólogo, e médico de formação).
 
Ao pensar nas químicas corporais que percorrem o corpo (esse pequeno mundo que é parte de nós), percebe-se uma responsabilidade parecida com a do homem no planeta: podemos tanto fazer guerras, quanto fazer cidades, e, se possível, construir templos e igrejas. Dentre outras vocações, nosso corpo pode ser um templo. As forças que a oração libera são tão orgânicas quanto sobrenaturais. É como se a escolha da palavra (“no início era o verbo”…) e da atitude fossem chaves de portões, que, quando abertos, liberam jatos químicos sobre as veias, criando mosaicos de paz e serenidade sobre nossa percepção.

20out2013

Download da HQ Ana Crônica

Em 2009, editei a HQ, Ana Crônica, que lancei pela TGB Gráfica e Editora. Foi meu primeiro trabalho mais elaborado. A primeira (e única) tiragem se esgotou, e agora, comemorando 4 anos de seu lançamento, enfim a disponibilizo na internet.

Ana Crônica é uma personagem deslocada num mundo que considera maluco demais para sua cabeça. Mora numa quitinete em São João Del Rei, está um pouco acima do peso, e adora filmes e músicas antigas. É amiga de muita gente da universidade, detesta seu emprego, e tenta levar a vida com um pouco de autenticidade e alegria.
Dividi as duas histórias que compõem a HQ em arquivos separados. Abaixo o link das duas. E, em seguida, o download do programa Comic Display, que possibilita a leitura das histórias no formato cbr.
Pros que não leram, espero que gostem. Quem já tem o gibi impresso, fica uma outra forma de reler e de guardar.
Rafael Senra

Nietzsche, profeta do Twitter?


Provavelmente, alguém já criou uma conta de twitter que reproduza aforismas de Nietzsche (não me darei ao luxo de procurar, prefiro arriscar essa hipótese quase que óbvia de que a conta existe). Seus trechos enxutos e polêmicos parecem ter sido feitas sob medida para a rede social de 140 caracteres.

Não que ele houvesse profetizado o limite de palavras, ou perseguisse qualquer estrutura reduzida, e muito menos que tenha sido um amante da síntese. Em seu livro Nietzsche como Obra de Arte, Rosa Dias discute como o estilo fragmentado do filósofo é menos uma vaidade de estilo, e mais uma afirmação de seus próprios conceitos já influenciando a própria forma do texto. Para ele, os tradicionais textos sistemáticos, com sua estrutura maciça e amarrada, engessam a reflexão livre, aprisionam os sentidos, e satisfazem apenas aos que cultuam o conhecimento acumulado.
Os amantes das palavras, que as saboreiam lentamente entre uma reflexão e outra, prefeririam a naturalidade e a força dos aforismas curtos. O caráter afirmativo e leve por trás de conceitos nietzschianos como “vontade de potência” já ficam claros na própria fragmentação do aforisma – na falta de continuidade, nos espaços em branco, tão caros à poesia e a música.
Em nosso século XXI, o pensamento de Nietzsche continuamente se revela atual, pungente, e sua mensagem ainda reverbera, dialoga profundamente com nosso contexto. Se levamos em consideração a lógica dos aforismas, isso ocorre não só no conteúdo, mas na forma (infelizmente, essa síntese ensaística favorece uma simplificação e uma deturpação do que é dito – e, nisso, o alemão é craque, visto que o nazismo foi um dos movimentos que mais se apropriou indevidamente de suas idéias).
Rosa Dias alerta, logo no início de seu texto, sobre como a escritura aforística “seduz os espíritos superficiais” (pág. 23), apesar do aspecto ainda mais complexo e aprofundado que tal escrita evoca. Um texto aforístico como o de Nietzsche costuma ser muito mais provocador que boa parte de ensaios sistemáticos e objetivos. Seus silêncios e vazios deixam lacunas que só podem ser preenchidas pelo leitor, favorecendo assim um rico aspecto interativo (outra característica bem afinada com nossa era virtual).
Os dois tipos de leitores que Nietzsche queria evitar ao escrever por aforismas são arquétipos bem reconhecíveis em nossas redes sociais contemporâneas. Rosa diz que, para o filósofo, “os piores leitores são, em primeiro lugar, aqueles ‘que agem como soldados saqueadores: retiram alguma coisa de que podem necessitar, sujam e desarranjam o resto e difamam todo o conjunto’, em segundo lugar, aqueles espíritos vulgares que tem um hábito repugnante de, na palavra mais profunda e mais rica, não ver senão a banalidade de sua própria opinião” (pág. 23). Qualquer semelhança com nossos feiciboquis não é só mera coincidência, mas é prova de que nosso senso comum sobre a civilidade de nossa sociedade é bem discutível.
Mas, diferente do bigodudo, me recuso a ser tão pessimista. Devemos nos lembrar que em meio aos BBBs e formadores de “xoxas doxas” que angariam tantos seguidores no twitter, encontramos diversas vozes ricas e estimulantes, que utilizam a limitação de espaço e a fragmentação da rede de modo positivo. Diversos poetas e comunicadores mais espertos já sacaram isso. Se eles não apresentam (ainda) uma lista de seguidores que ultrapasse os quatro dígitos, a culpa é menos da força de seus escritos, e mais porque o panorama sombrio prenunciado por Nietzsche, como já disse antes, soa tristemente atual. O próprio filósofo, caso nascesse hoje em dia e quisesse fazer uma conta na rede, provavelmente não faria muito sucesso. Seria só a versão virtual daqueles mendigos com placas do apocalipse que fazem o folclore das nossas praças interioranas. Entretanto, ainda que quixotescas pelas contingências na nossa época, pelo menos essas figuras do bem estão aí, compartilhando seu pensamento com aqueles que se interessam, ambos (destinatário e remetente) dispondo de meios mais ágeis de diálogo, graças a internet.
– foto extraída do blog http://namedidadosensivel.blogspot.com.br