É oficial: me aposentei dos shows ao vivo

Não é um clickbait.

Algumas pessoas me conhecem como escritor. Outras como autor de quadrinhos. E há quem me conheça como músico. O fato é que, mesmo sabendo que o mundo valoriza os especialistas, nunca abandonei a maior parte das atividades artísticas que faço, e o motivo é que eu gosto de cada uma dessas tarefas. Deveria justificar, não é?

Teoricamente sim – o problema é a nossa consciência crítica, que as vezes é mais crítica que consciente. Você não deixa de pensar que, se especializasse em uma só prática, sua vida seria muito mais fácil. Você teria mais possibilidades técnicas, maior chance de reconhecimento, e até poderia sonhar em ser decentemente remunerado.

Mesmo sabendo disso tudo, banquei a vida de multitarefa, sacrificando feriados e fins de semana agindo como um sísifo no meu escritório, equilibrando os malabares e pedalando meu triciclo enquanto soletro em javanês. E ainda faço isso. É uma escolha consciente, que sustento com alegria e sem reclamar.

O que nunca falei tão abertamente foi sobre um fantasma que me assombrou ao longo de muitos anos. Talvez metade da minha vida até agora, devo dizer:

A dificuldade de levar meus projetos musicais para os palcos. De tocar ao vivo.

Para ilustrar a longevidade dessa obsessão, lembro que, em 2003, tinha acabado de ingressar no curso de Letras. Vi um colega de turma tamborilando os dedos na carteira ao lado. De imediato, perguntei, com os olhos arregalados: “você é baterista?? Quer montar uma banda comigo?”. Meio acanhado, ele subitamente recolheu seus dedinhos agitados: “calma, cara, eu sou só ansioso mesmo”.

Ao longo desse tempo, eu cheguei a montar várias bandas, a maioria de covers, e umas poucas autorais. Nenhuma delas ficou em atividade por mais de um ano. Acho que poderia escrever um livro cômico sobre minhas desventuras com bandas. Nessa área, acontece meio que uma sincronicidade ao contrário. Quem já leu a história do diretor de cinema Terry Gilliam tentando filmar Dom Quixote sabe do que estou falando. Sempre que eu tentava montava um projeto musical dedicado aos palcos, algo conspirava para que ele implodisse.

Até que me mudei para o Amapá, em 2018, e achei que seria diferente. Na verdade, foi, pois graças aos amigos e profissionais da música que encontrei aqui, consegui gravar vários discos autorais, que tiveram reconhecimento, incluindo duas indicações ao Grammy Latino.

Mas não consegui montar uma banda de apoio para tocar esse material ao vivo. Até convidei uma meia dúzia de pessoas para esses projetos. Uns não tinham tempo, outros aceitaram mas não tiraram as músicas, alguns faltavam aos ensaios, uns nem respondiam as mensagens, enfim, teve de tudo. Até quando tentei montar um power trio a coisa empacou. A sincronicidade reversa não deu trégua nessas duas décadas.

Você deve estar se perguntando “mas será que o Rafael insistiu pra valer nessa história de tocar ao vivo?”. A resposta é: não. Eu insisti, pero no mucho. E perceber isso foi um ponto de virada.

Ao longo dos anos, achei que a história de tocar ao vivo era como uma lei inquestionável do universo. Um axioma talhado na pedra. Quando estava nas filas de banco, ficava regendo arranjos imaginários do meu show onírico. Era, na verdade, um mecanismo de fuga. Mas, para esse mecanismo ser tão estimulante, vem o choque de realidade: ele não podia acontecer. Porque, se fosse real, eu não poderia mais imaginar tão amplamente, não é?

Passei anos pensando de que modo poderia realizar essa história. Mas, ao longo desse tempo, nunca cogitei pra valer se eu deveria realizar; ou, pior: se eu realmente queria.

Então porque insistir nessa aventura quixotesca? Acho que me aferrei com muita intensidade a uma percepção que perdeu o prazo de validade: a ideia de que, para existir na indústria da música, um artista precisa atuar no tripé “gravação-shows-divulgação”. Porque era assim antigamente, né. Quando existia uma indústria, quero dizer. Existiam gravadoras, você tinha um disco produzido pelo Mayrton Bahia, tocava no Faustão, o clipe passava no programa da Sabrina Parlatore na MTV, e depois você dava uma entrevista engraçada para o Jô Soares, e de quebra ganhava uma matéria de capa na Revista Bizz assinada pelo Forastieri ou Pedro Alexandre Sanches.  

Sim, é o tipo de pensamento que você elabora na adolescência, e passa os anos carregando como se fosse um ovo sensível, e vai cuidando com carinho desse pensamento delicado, protegendo-o das pessoas impiedosas e do mundo mal lá fora. Só que, você não percebeu, mas o mundo foi mudando ao redor desse pensamento, desse ovo (e ele nem chocou).

Você não percebeu que a pirataria bombardeou o que chamávamos de indústria da música. Enquanto a Bizz e a MTV se tornavam apenas um quadro na parede, como dizia o poema do Drummond, boa parte dos bons músicos migraram para o sertanejo, ou foram tocar covers em barzinho (isso pelo menos eu consegui realizar por alguns anos), ou viraram professores de conservatório, ou montaram estúdios para gravar jingles políticos. Mas o tripé “gravação-show-divulgação” não existe mais para a maioria das pessoas.

Quando a mim, vi a realidade bater na minha porta, até que cheguei no “osso” dessa questão, no seu ponto mais estrutural: ok, eu até gosto de tocar ao vivo. Mas, no fim das contas, o meu barato na música é escrever canções. E ponto. Não faço questão nenhuma de ser eu a cantá-las. Eu me forcei a ser o intérprete desse material, mas sou o primeiro a reconhecer meu caráter canhestro em carregar essa tocha.

Veja só a ironia: esse ano, lançarei um disco novo (a primeira prévia dele saiu hoje, o single Portal da Samaúma, que interpretei ao lado da querida cantora Lara Utzig, da banda Desiderare). Esse trabalho completo de inéditas se chama Sonhando Acordado. Mas é a primeira vez em muito tempo que não sonho acordado sobre como vou interpretar essas músicas num projeto imaginário utópico cósmico doido. E devo confessar que me sinto bem com essa decisão.

Sei que não devo satisfações a ninguém, mas gostaria de explicar um pouco mais profundamente porque cheguei nessa decisão. Pode pular essa parte do texto se quiser (ele acaba logo depois, na verdade).

Vou citar aqui um filósofo oriental do qual gosto muito. Ele se chama Lao Tsé (ou Lao Tzu, tem várias grafias), e viveu cerca de meio século antes de Cristo. Ele escreveu o Tao Te Ching, que é um dos livros mais necessários já escritos.

É o tipo de obra que faz a gente querer soar profundo, mas vou falar sobre ela aqui de um modo meio grosseiro, e peço perdão desde já. O fato é: a maioria das pessoas no planeta são tapadas desde a época de Lao Tsé. E, quando completou quarenta anos, o próprio filósofo percebeu por si mesmo que a burrice generalizada não tinha muito remédio. Ele decidiu abandonar seu cargo na biblioteca real e sair pelo mundo, talvez, sei lá, ir vender a sua arte na praia.

A decisão estava tomada, mas ele não contava que um dos soldados do Rei Wen era sem noção e iria empatar o seu caminho. O encarregado disse que só autorizaria a saída da corte caso o notável filósofo redigisse algo que documentasse toda a sua sabedoria para as futuras gerações. Ok, Lao era mesmo um sujeito muito sábio, mas provavelmente não estava a fim de passar mais tempo no meio daqueles néscios. Em três dias, escreveu 81 versos e entregou as páginas ao soldado. Deu no pé e nunca mais voltou à China.

Mesmo escrito na correria, o Tao Te Ching é um livro essencial, uma verdadeira joia literária, poética e existencial. Um de seus poemas é destinado aos que acreditam na ideia de vencer na vida por esforço próprio. Em vez de reforçar essas falácias de coach, Lao Tsé apresenta um conceito que dá nó na nossa cabecinha ocidental: o “não-fazer” (wu-wei).

Basicamente, ele está dizendo que existe um fluxo de acontecimentos passando pela vida de todos nós, como se fosse um rio. E a maior parte das pessoas está remando na direção oposta, enquanto repetem discursos de meritocracia, sacrifício, trabalho árduo e outras frases feitas. Em vez de agir assim, você já tentou apenas flutuar com a maré? Já tentou parar de insistir? Deixar o orgulho de lado, só por um momento? Se sim, o que aconteceu? Deu tudo certo no final?

Ou seja: por que as coisas precisam sempre ser do jeito que você idealizou? A natureza é muito mais bela que os seus planos, e veja como ela é irregular, ela tem formas pontiagudas, que parecem assimétricas, e ela sempre muda, ela está à deriva dos acontecimentos, e, no entanto, não há nada mais bonito. Por que não deixar seu orgulho de lado e permitir que as coisas se acomodem por si mesmas?

Diz o Tao Te Ching:

“Na busca do conhecimento, todos os dias algo é adquirido

Na busca do Tao, todos os dias algo é deixado para trás

E cada vez menos é feito

até se atingir a perfeita não ação”.

E arremata:

“Domina-se o mundo deixando as coisas seguirem o seu curso.

E não interferindo”.

Enfim, o fato é que, por muito tempo, a ideia de tocar ao vivo se tornou um protocolo na minha cabeça. Mas agora deixo os protocolos para o serviço público. Estou muito feliz gravando discos, é uma atividade que faço naturalmente, e que cumpre um ciclo completo para mim.

Além do mais, os irmãos do Oasis finalmente fizeram as pazes. Graças a eles, a Ticketmaster e outras empresas de ingressos não vão falir por culpa da minha aposentadoria dos palcos.

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