É original a música pop do Século XXI?

Ou: por que valorizar mais a novidade do que a expressão genuína?

Esse ensaio é a Parte 2 (e final) de uma série chamada “A falácia da originalidade na música pop”. No texto anterior, traçamos um breve histórico das artes que focava no nascimento da visão inflacionada de originalidade e do gênio individual.

Em vez de tratar das artes no geral, nesse texto aproximaremos as reflexões do tema da música popular, pensando como a noção de originalidade é tratada em nosso tempo presente – uma época ainda fascinada com seus artistas geniais que parecem pairar acima do bem e do mal.

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A cena é fácil de imaginar: um ouvinte de música em 2024, dando uma vasculhada em sua conta de streaming, buscando se atualizar com o panorama da música contemporânea. Ele ouve uma dúzia de artistas na playlist que lhe foi recomendada, e, em seguida, reclina a cabeça na sua poltrona gamer, coçando as têmporas antes de refletir: “será que não produzem nada hoje em dia que soe realmente novo?”.

Esse “ouvinte ideal” reflexivo provavelmente terá alguma estrada, alguma vivência. Afinal, para os mais jovens, tudo soará novo. Mas as pessoas situadas na faixa dos quarenta, cinquenta anos ou mais terão parâmetros mais sólidos para contrapor nessa equação. Pessoas que cresceram em um contexto muito diferente: se pensarmos na indústria de massa dos anos 1970 ou 1980, podemos vislumbrar muito facilmente ali lascas consideráveis do que chamamos de originalidade. Basta assistir um documentário ou ler livros sobre o período, e fica claramente perceptível que, naquela época, havia no ar a adrenalina das descobertas, um clima de inovação, a sensação de que existiam misturas e fórmulas para se desenvolver – e, o principal, novidades tecnológicas surgindo aos borbotões.

Até os anos 80, a indústria musical era quase toda dominada pela tecnologia analógica, e ano a ano as empresas produtoras de instrumentos musicais traziam novas ofertas de equipamentos e sintetizadores com os timbres mais inovadores e únicos. Muitos artistas pagavam fortunas por um equipamento novo, pois, ao lançarem seus singles, se tornariam como “donos” daquele som aos olhos do público.

Essa associação entre uma novidade tecnológica e a obra de um artista ainda ecoa no inconsciente coletivo dos ouvintes de música. Experimente tocar no teclado o som de um teclado wurlitzer, e logo alguém dirá que “parece Supertramp”. Se você toca sons do sintetizador Yamaha DX7, muitos dirão “parece ‘Take on Me’, do A-ha”. Não importa que o Yellow Magic Orchestra tenha usado esse teclado antes, e tantos outros artistas; o que importa é que o A-ha fez mais sucesso, ao ponto de praticamente “patentear” o som.

Aos olhos de muitos, isso é um tipo de originalidade, ainda que superficial. O Supertramp fazia um tipo de música herdeira dos Beatles, mas as inovações tecnológicas e de timbre lhes dava uma aura de artistas “modernos” no fim dos anos 1970. Compare o sucesso do Supertramp com o destino de artistas do fim dos anos 70 que tentaram imitar os Beatles na forma e na sonoridade (bandas como Badfinger ou Klaatu): apesar de algum reconhecimento de público inicial, foram em seguida desprezados e varridos para o ostracismo. Afinal, em nosso tempo, ainda vigoram os mesmos conceitos propagados pelos românticos, da originalidade como valor maior. A noção de arte de agora estacionou no séc. XVIII. E, pior: passou a demonizar toda a “imitatio” de eras passadas.

Vou trazer aqui um exemplo (que, confesso, foi o catalizador desse ensaio): esses dias, graças a uma matéria do site Célula Pop, descobri uma banda incrível chamada High Llamas, e passei dias ouvindo sua discografia com enorme deleite. Entretanto, ao pesquisar sobre eles na internet, fiquei espantado ao ler tantos internautas acusando-os de serem “meros imitadores dos Beach Boys”. Em uma audição rápida, qualquer um é capaz de perceber que os arranjos remetem bastante à discos como Pet Sounds, com muito uso de instrumentos como cravo, xilofone, além da abordagem das orquestras, os coros “lalala” estilo surf music, etc. Mas, se você aprofunda a escuta, vai perceber também influências de bossa nova, dos compositores do Great American Songbook (Gershwin, Bacharach, etc.), além de trilhas sonoras de filmes e muito mais.

Entre os artistas que ouço com frequência, nenhum tomou tanta pedrada quanto o Marillion, eternamente acusado de ser cópia do Genesis. Essa ofensa basta para que pessoas nunca tenham buscado sequer ouvir os discos da banda. Uma premissa dessas deixa de levar em consideração a qualidade das composições. É como se a régua da originalidade deixasse de ser uma régua e passasse a ser uma guilhotina.

(Para piorar, eu defendo que o som do Marillion se parece muito mais com o Camel que com o Genesis. Por sinal, nos anos 1970 o Camel foi muito acusado de copiar o Pink Floyd, o que é outro absurdo ainda maior. Nenhum dos crentes de ideias assim ouviu esses artistas com atenção, isso posso garantir).

Se a gente leva essas acusações de falta de originalidade às últimas consequências, o que vai sobrar de gêneros como o indie ou o heavy metal? Isso para citar apenas dois nichos – mas podemos estender o raciocínio para quase todo gênero de música popular.

Se você conversar com ouvintes mais exigentes de música pop – colecionadores, audiófilos, músicos diletantes, toda essa galeria de admiradores mais exigentes –, vai perceber que eles não carregam consigo essa régua implacável da originalidade: se for bem feito e honesto em sua proposta, fica tudo certo. Mas sempre podemos perceber um séquito de fãs “papagaios”, repetidores de um paradigma que tem cheiro de mofo, e que merece sim ser questionado. Sobretudo em nosso tempo de tecnologia digital, em que não existem mais sons novos. Veja os plugins digitais usados como VSTs pelos músicos atuais: praticamente todos são emuladores de sons criados na era analógica.

Enfim, se continuamos excessivamente apegados à noção de originalidade, seguiremos desprezando as produções musicais do nosso tempo, e ignorando o que realmente deveríamos prestar atenção, que envolve a expressão dos artistas, sua estética, sua mensagem. Na época do neoclassicismo, não importava a tal originalidade, pois valorizava-se a contribuição expressiva do artista. Esse tipo de paradigma, tido como ultrapassado, nos ajudaria bastante a fazer as pazes com o nosso tempo.

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