Entre a homenagem e o plágio: o dilema do pastiche

Uma defesa desse polêmico procedimento das artes e da arquitetura

1. O que é um pastiche

Minha cidade natal, Congonhas, é conhecida por abrigar o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Esse conjunto arquitetônico (que, além da igreja, compreende o adro, com as estátuas de doze profetas bíblicos e mais seis capelas anexas) é considerado pela UNESCO como o maior museu barroco a céu aberto no mundo. Mas, apesar desse acervo, Congonhas não exibe proporcionalmente tantas casas e imóveis com fachadas conservadas – pelo menos na comparação com outras cidades históricas mineiras localizadas na Estrada Real, como Ouro Preto ou Diamantina.

Assim, as casas e prédios públicos da cidade com aspecto supostamente antigo acabam chamando a atenção. Certa vez, eu estava andando com alguns amigos pelas ruas de Congonhas, e apontei para a Câmara dos Vereadores (local onde, atualmente, funciona a Biblioteca Municipal), e elogiei o acabamento do prédio. Ao que um amigo me corrige:

“Mas, Rafael, esse prédio não é realmente barroco. Ele é um pastiche!”.

Foi a primeira vez que ouvi essa palavra. Nesse dia, descobri que, na arquitetura, se diz que uma obra é um pastiche quando ela imita ou emula um estilo já consagrado. Foi o caso desse prédio que apontei, construído no século XX, mas trazendo elementos do barroco produzido entre os séculos XVII e XVIII.

Em algumas das cidades históricas, o pastiche se mostra um recurso bem empregado para tentar reestabelecer uma aura de preservação geral – como uma maquiagem pseudohistórica em imóveis que, na verdade, foram feitos recentemente. O maior exemplo disso seria Tiradentes, tido como um dos mais belos municípios de Minas, mas cujo centro histórico foi gentrificado a partir dos anos 1990, com a consequente reconstrução de casas e prédios públicos imitando o estilo barroco.

2. Origem do termo

A expressão “pastiche” é derivada da palavra italiana pasticcio, cujo significado alude a uma mistura de diversos elementos. No século XVIII, os franceses adaptaram o conceito para o galicismo “pastiche”, se referindo a pintores que imitavam o estilo já consagrado por outros autores ou movimentos.

Alguns procedimentos que podem ou não constituir um pastiche são:

– a adaptação (que é quando um autor refaz – fielmente ou não – um conteúdo específico, seja na mesma mídia/linguagem ou em outra),

– a apropriação (quando elementos próprios de outra cultura ou outra obra são utilizados por determinado autor, numa espécie de “empréstimo”),

– ou a bricolagem (que é quando uma obra se utiliza de diversas referências e modelos, misturando tudo isso em uma nova criação).

3. Pode comer, ou faz mal?

Quando as pessoas em geral se deparam com um pastiche, sempre paira a mesma dúvida: é homenagem ou tiração de sarro? Essa ambiguidade faz parte da modalidade pastiche, sempre indefinida entre a categoria de cópia grosseira ou de tributo honroso.

Mas a ambiguidade mais grave em torno do pastiche é ser confundido com um pecado mortal no mundo das artes: o plágio.

Em 1990, a escritora Ana Miranda acabara de publicar seu best seller Boca do Inferno, quando o professor de literatura portuguesa da UNICAMP Antonio Alcir Pécora publicou um texto no caderno Ilustrada (Folha) denunciando um suposto plágio de Miranda. Sendo pesquisador especialista na obra do Padre Vieira, Pécora afirmou que a escritora usou textos inteiros do autor barroco sem citar a fonte.

Ana acabou sendo defendida pelo jornalista Caio Túlio Costa, que, também na Folha, escreveu um artigo demonstrando como textos clássicos são constantemente citados na história da literatura universal como um procedimento já estabelecido.

4. Visões do pastiche, no passado e no presente

Na verdade, o pastiche é parte do panorama artístico pós-moderno – vide as latas de sopa pintadas por Andy Warhol. A verdade é que a apropriação e a repetição de motivos são aspectos que nunca deixaram de existir na história da arte: o que mudou foi o seu status diante da crítica e do público.

O historiador da arte Arthur Danto afirma que, em meados do séc. XVIII, houve uma mudança no mundo ocidental sobre o que seria de fato “arte”. A partir daí, muitos teóricos mais conservadores começaram a propagar uma noção apocalíptica de “fim da arte”, pensando que a abordagem clássica (herdada da tradição greco-romana) teria morrido. Porém, para Danto, isso diz respeito nem tanto ao fim, mas ao enfraquecimento de um tipo de arte – mais calcada no paradigma clássico da mímesis aristotélica.

Na sua obra Poética, Aristóteles propunha o paradigma mimético como um conceito para se pensar o mundo através da imitação e da repetição. Em uma síntese talvez grosseira aqui, eu resumiria a mimesis como a tentativa de representar uma outra coisa qualquer – seja um objeto, uma pessoa, um lugar, um sentimento, etc.

Essa perspectiva, que permeou a história da arte por séculos, fazia com que os artistas pensassem nas referências explícitas como verdadeiras homenagens. Os poetas árcades, por exemplo, têm estrofes inteiras de seus poemas extraídas de versos de Virgílio ou Camões.

Mas tudo muda a partir do século XVIII, quando o romantismo consagra uma noção de arte baseada na originalidade. A partir daí, procedimentos como o pastiche acabam sendo vilanizados.

5. Uma solitária defesa

Confesso que sou um apreciador dos pastiches. Meu apoio a esse tipo de abordagem me leva as vezes a cometer algumas gafes. Outro dia, uma amiga tomou a iniciativa de mostrar a gravação de uma música cantada por ela, e eu de cara comentei “nossa, sua voz lembra a da Elis Regina”. Apesar da intenção de elogiar, percebi de imediato que a frase foi recebida com certa reserva. É como se paralelismos dessa natureza não representassem um valor, um dado positivo. E eu nem quis dizer que essa amiga estava fazendo um pastiche. Minha intenção era dizer que o trabalho dela dialogava com a tradição da MPB, e que ela se inseria em uma egrégora maior que ela mesma.

Existem exemplos de pastiches no mundo contemporâneo que receberam aclamação pública. Veja o caso de uma das bandas mais bem sucedidas dos anos 1960: o Creedence Clearwater Revival. Eles exploravam temas, sonoridades e atmosferas do sul dos Estados Unidos, especialmente da Louisiana e de regiões com forte influência do blues, do country e do swamp rock.

Apesar de evocarem o imaginário do sul americano – suas paisagens pantanosas, tradições musicais e até o sotaque local do Southern rock – seus integrantes eram, pasmem, da ensolarada Califórnia. Embora a apropriação dessas referências possa ser vista como um tipo de pastiche, a música do Creedence geralmente é tratada com respeito, por conta da autenticidade emocional e pela qualidade das composições.

Tudo bem que ninguém pensa no Creedence como uma banda que produz arte “elevada”. Mas não foi à toa que Pablo Picasso afirmou que se “os bons artistas copiam, os grandes artistas roubam”. E, antes dele, Voltaire teria dito que “a originalidade nada mais é do que a imitação criteriosa”.

O pastiche adquiriu uma conotação pejorativa justamente por ele lembrar a todos nós de que não existe arte completamente original. Tudo dialoga, tudo se influencia mutuamente. O inconsciente individual estará sempre submetido ao magnetismo do inconsciente coletivo.

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Ps: Essa newsletter, que era semanal, passará a ser quinzenal. Por isso não teve post no dia 16/11/2024. Entretanto, por conta de uma perda familiar, não foi possível postar no dia 23/11/2024.