O nascimento da originalidade

Por que as pessoas valorizam tanto uma obra que não se parece com nenhuma outra?

Minha intenção inicial aqui era escrever um texto sobre música pop, a partir da constatação de que diversos fãs e ouvintes trazem consigo uma régua implacável para quantificar e rotular um artista como “genial”, “bom” ou “medíocre”: trata-se da famigerada pergunta “MAS ELE É ORIGINAL?”.

Para tentar entender porque tantas pessoas hipervalorizam a questão da originalidade na música popular, escrevi um ensaio chamado “A Falácia da Originalidade na Música Pop”. O tamanho do texto me obrigou a dividi-lo em duas partes. Assim, nesse primeiro ensaio, me ative ao que chamei de “O nascimento da originalidade” – que trata não apenas de música, mas das artes em geral. Logo mais, postarei a segunda e última parte, intitulada “É original a música pop do Século XXI?”, onde pretendo trazer minhas tentativas de responder a essa ignóbil e complexa pergunta.

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Parte 1 – O nascimento da originalidade

A hipervalorização da originalidade pode ser rastreada no período do pré-romantismo (Séc. XVIII), propagada por poetas como Goethe, Schelling, a geração do Sturm and Drang, e, principalmente, filósofos como Johann Gottfried von Herder, que atacavam a tradição literária grego-romana da emulação (“emulatio”), que, a grosso modo, podemos explicar aqui grosseiramente como a aplicação de um sistema de regras (ou de modelos) no campo artístico.

Antes do séc. XVII, o que prevalecia na tradição das artes eram os conceitos de “emulatio” e “imitatio”, herdados da Grécia Antiga. Os termos originais já trazem para nós, falantes do português, um eco considerável de seu sentido, se referindo aos princípios da imitação ou emulação de padrões clássicos. Nessa perspectiva, o bom artista era aquele que conseguia reproduzir com perfeição os modelos tidos como consagrados.

A noção do “imitatio” parte de um papel até mesmo didático, pois é natural que um artista imite a obra de outro quando busca aprender a prática do ofício. Obviamente, na Antiguidade, essa prática não se restringia aos anos de juventude, de formação, mas pautavam toda a carreira de um artista, seja qual fosse a sua área de atuação. Os grandes nomes eram aqueles que conseguiam se filiar a um ideal, um modelo, e criar obras notáveis de acordo com esses parâmetros.

Claro que existem obras originais no período da Antiguidade, só que a noção de “originalidade” era diferente da que passa a valer do séc. XVIII em diante. Sobretudo após a ascensão do gênero romanesco na literatura (o grande marco de virada aqui costuma ser a publicação de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes). A partir de então, a boa obra passa a ser aquela que propõe a suas próprias regras intrínsecas. Quanto mais drástico o rompimento com qualquer tipo de tradição, mais o autor será conhecido como original… e como genial.

Sim, porque, para fazer valer a noção de originalidade, foi preciso ventilar o conceito de “gênio individual”. Na Grécia Antiga, não se pensava tanto nos artistas como gênios repletos de talento e sagacidade acima dos reles mortais. Eles acreditavam que o mérito dos artistas estava em ser tocado pelas “musas”: as emissárias da inspiração divina, que representavam forças externas ao criador, e que o inspiravam e guiavam na tarefa da criação. Portanto, a pessoa que criava obras notáveis era vista como um escolhido das musas, não como um gênio.

Mas os intelectuais e artistas do séc. XVIII não acreditavam em musas, ou pelo menos não queriam se vincular a esse tipo de concepção de produção artística. Assim, autores e poetas como Wordsworth, Shelley ou Byron se tornaram ferrenhos defensores da noção de gênio individual – esse humano superpoderoso, capaz de criar obras que pairavam acima da mediocridade mundana. Como se não bastasse, no fim do séc. XIX eis que surge outro conceito para aprofundar essa noção: o de “vanguarda” – termo extraído dos jargões militares, aludindo ao soldado que se situava na frente de todos, e, por isso, tinha uma visão privilegiada do panorama, podendo avistar antes o que estava a acontecer.

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Aqui encerro a primeira parte dessa série sobre as falácias da originalidade, na promessa de que, no texto seguinte, vou lidar com um foco muito mais estrito e aprofundado, envolvendo a música popular contemporânea.

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