Reflexões sobre o poder da linguagem sagrada em transcender o tempo.
Por que tantos textos da Bíblia têm linguagem poética?
Pelo mesmo motivo que o Tao e os textos de Sêneca são repletos de recursos emprestados da poiesis – figuras de linguagem de toda ordem, deslocamento do sentido linear da linguagem, etc.
Todas essas obras resistiram ao teste do tempo. Elas não são lidas como documentos datados que só dizem respeito a uma época perdida. Essas obras falam com as pessoas do presente; e falarão com as pessoas do futuro.
Como ressalta Erich Auerbach em Mimesis, a Bíblia se distingue dos textos clássicos gregos e latinos pela profundidade de sua linguagem. Enquanto a literatura clássica tende a apresentar os eventos de forma clara e ordenada, sem desvendar a interioridade de seus personagens, a narrativa bíblica é marcada por uma linguagem carregada de implicações ocultas e por uma intensidade emocional que transcende o imediato. A Bíblia, segundo Auerbach, não apenas relata fatos, mas mergulha na complexidade humana e espiritual, convidando o leitor a contemplar o insondável. É essa combinação de simplicidade e profundidade que torna a linguagem bíblica tão poderosa e duradoura, mantendo sua relevância ao longo dos séculos.
Na verdade, a atemporalidade da linguagem poética é um fenômeno que permeia todas as culturas. Seu efeito é irresistível, como se tal recurso permeasse um texto com uma substância que ultrapassa o tempo e a matéria. O dom da poesia é um orvalho divinal concedido aos seres humanos. Um poeta é um representante celestial na Terra: ele oferece vislumbres do porvir.
Em termos semióticos, a poesia tem uma maneira de operar que é curiosa. No momento em que contorce e desloca o significante (palavra), a poesia preserva a essência do discurso (o significado). A poesia conserva. E, aqui, podemos traçar um paralelo com a prática dos antigos em cidades do interior, ao usar banha de porco como conserva para os alimentos, séculos antes da invenção da geladeira e dos conservantes químicos que proliferam na indústria atual. Do mesmo modo, diversas religiões e cultos ancestrais – incluindo aqui a tradição do Velho Testamento – se valiam de sacrifícios, e usavam as vísceras de animais até mesmo como oráculos. A carne, assim como a poesia, sempre serviu como ferramenta litúrgica.
Invertendo a comparação, a poesia é como se fosse a víscera da alma. Mas ela oferece algo a mais; afinal, foi pela poesia que a tradição cristã conseguiu superar o sacrifício: o ritual da eucaristia nada mais é do que o sacrifício do Cristo vivenciado no plano simbólico (metafísico), e não mais literal, enquanto sacrifício efetivo. A poesia, assim como a carne, tem o poder de impedir que a essência das coisas se deteriore pela ação do tempo. Entretanto, na comparação, a poesia até sai ganhando, visto que mesmo a carne tem um poder de conservação limitado também pelo tempo.
É a poesia que consegue nos trazer o dom da imortalidade: a chama que nunca se apaga.