A explicação vai além da música
É muito estranho parar pra pensar no fato de que o Pink Floyd é uma banda famosa. Acho que a maioria dos ouvintes de música já se acostumou com isso, mas pense como tudo em torno do grupo parece anticomercial. As capas de disco famosas geralmente têm como foco sorridentes membros de banda. No caso do Floyd, entretanto, você encontrará figuras tão díspares quanto um porco voando em volta de uma fábrica, um homem pegando fogo, um prisma misterioso, ou até uma vaca no pasto.
No caso das bandas famosas, geralmente sabemos de cor o nome dos membros. Mas, até algumas décadas atrás, a grande maioria das pessoas apenas sabia que Pink Floyd era a “banda do prisma”. Antes da internet popularizar a treta “Waters x Gilmour”, boa parte das pessoas desconhecia o nome e o visual dos integrantes. Nos anos 70, pensava-se que Pink Floyd era uma pessoa (falarei disso logo mais).
E o que dizer das canções? Nada de temas fáceis de amor aqui. Em vez disso, você encontrará letras que parecem uma viagem de ácido (pense em “Set the Controls for the Heart of the Sun”, ou “Astronomy Domine”), sobre a loucura (praticamente todo o disco The Dark Side of the Moon), sobre o café da manhã psicodélico de Alan (foi uma piada, essa é instrumental). E duvido que você saiba de cor esse título que é quase uma letra inteira de música: “Several Species of Small Furry Animals Gathered Together in a Cave and Grooving with a Pict”.
Falando sério, quantas bandas com músicas de dez ou vinte minutos (e as vezes com longas introduções de teclado ocupando quase ¼ da canção) você conhece? (Não vale responder se você for fã de rock progressivo).
Só que, apesar de tantas estranhezas e excentricidades, o Pink Floyd ocupa o nono lugar na lista dos dez artistas mais vendidos da história do rock.
Existem várias explicações para como um grupo tão pitoresco chegou a um glorioso patamar de popularidade e aclamação pública. De uns anos para cá, comecei a costurar uma interpretação que me parece ajudar a explicar todo o magnetismo exercido pelo Pink Floyd: eles são alguns dos melhores contadores de histórias dentro do rock.
Várias de suas músicas são totalmente cinematográficas (e não a toa, diversos discos da banda se tornaram trilhas de diretores como Michelangelo Antonioni, Alan Parker ou Barbet Schroeder). Essa percepção do potencial narrativo dentro das músicas do Floyd me parece ser a explicação mais abrangente para explicar seu estranho carisma. Contudo, não posso me gabar de ter sido eu a perceber o fato. Pincelei esse mote de uma declaração do guitarrista Alex Lifeson e do baixista Geddy Lee, ambos ex-integrantes do Rush, em uma entrevista para a revista Guitar World datada de junho de 2009 (a entrevista é atribuída aos dois, e não encontrei o autor isolado dessa frase):
“O Pink Floyd tem arranjos incríveis, as músicas deles são ricas e complexas, mas não particularmente complicadas. Eles podem demorar o quanto quiserem para contar a você uma história, mas ela é sempre interessante”.
Desde o início, a banda demonstrou ser um celeiro fértil de talentos combinados para construir musicalmente boas histórias. Quando o Floyd surgiu, em 1965, o “maestro” dessas obras era o jovem pintor e visionário Syd Barrett, um sujeito carismático e fora da caixinha que era tido pelos outros integrantes do grupo como uma espécie de guru. O primeiro single de sucesso do Pink Floyd, “Arnold Layne”, já tem como título o nome de um personagem lunático conhecido pelo peculiar hábito de roubar calcinhas na sua pacata vizinhança.
Jimmy Page, do Led Zeppelin, comentou em 2017 sobre a enorme influência de Barrett:
“Ele era absolutamente inacreditável em termos do que estava fazendo; deu um passo para fora da caixinha e canalizou todas aquelas coisas incríveis. A versão deles da música psicodélica era muito, muito legal. [Naquela época] tinha coisas rotuladas como psicodelia que, não quero citar nomes, mas que eram horríveis! Mas o que eles [Syd Barrett e o Pink Floyd] estavam fazendo era seriamente experimental, e marcou muito.”
Barrett foi quem deu o norte para o grupo. E foi quem lhes deu seu estranho nome também. Toda a ideia de usar luzes e efeitos especiais ao vivo, a aura psicodélica, o foco em longos instrumentais, a afirmação da esquisitice, tudo isso veio dele. É pena que esse artista brilhante tenha sido tragado pela energia caótica que ele mesmo conjurou.
O fato é que, com sua saída forçada em 1968 (por razões de deterioração da saúde mental devido ao consumo de substâncias lisérgicas), entra David Gilmour em seu lugar, e o vazio de Syd deixou o quarteto com um abacaxi nas mãos: “Which One’s Pink?”.
(Explicando a frase: em 1973, o Pink Floyd lançou o best-seller The Dark Side of the Moon, e reza a lenda que um executivo de gravadora se aproximou do quarteto e perguntou “mas qual de vocês é o Pink?”, achando que o nome da banda era, na verdade, o nome de um dos integrantes. O egocêntrico Waters nunca se esqueceria do episódio. Ele usou a frase do executivo como parte da letra de “Have a Cigar” (presente no disco posterior a Dark Side, Wish You Were Here, de 1975), e também a inseriu no filme The Wall, quando um dos executivos de gravadora pergunta “which one’s Pink”?).
Voltando aos anos de formação da banda (entre 1968 e 1973), podemos dizer que, nessa época, nenhum deles (e todos eles) foram Pink. Nesse período, eles uniram forças para descobrir juntos o que tinham a oferecer do ponto de vista artístico. Em vez de continuar repetindo o modelo de pop psicodélico sessentista que deu certo com Syd Barrett, o Pink Floyd seguiu se arriscando nas propostas mais anticomerciais que se possa imaginar (ouça o disco Ummagumma para entender do que estou falando).
Até que, nas sessões de gravação do disco Meddle, de 1971, eles encontraram enfim a dinâmica que lhes levaria ao Olimpo e garantiria um lugar na história do rock. E não foi com nenhuma música de 3 ou 4 minutos cheia de riffs ganchudos ou um refrão cativante. E sim com “Echoes”, um tema de 23 minutos cheio de trechos arrastados e experimentalismos de guitarra (pense naqueles exatos 4 minutos e 45 segundos de ruídos atonais e sons ambiente que divide as duas partes da longa suíte). Ali a banda descobriu que seu ouro não estava no virtuosismo, nem na estranheza pura e simples, ou mesmo em fazer as pessoas rebolarem. Eles começaram a contar histórias com suas músicas.
Uma das qualidades dos bons narradores é poderem oferecer um olhar único, sob um ponto de vista que ninguém tinha pensado. Não é o que se conta, mas como se conta. De maneira consciente ou não, foi o que os integrantes do Pink Floyd entenderam como fazer. Além do mais, somado ao apelo musical, havia também a tradução desse universo lúdico nas capas dos álbuns. Mérito de Storm Thorgerson e Aubrey Powell, do estúdio Hypgnosis, que ofereceram um contraponto de brilhantismo e excentricidade em tantas capas clássicas.
Outra qualidade notada na obra do Pink Floyd envolve o uso de contrastes – uma regra que funciona para o bom design e também para as boas histórias. Na verdade, a própria banda era formada de pessoas com temperamentos e visões de mundo tremendamente contrastantes, como um verdadeiro eclipse (perdoem o trocadilho).
De um lado, Roger Waters querendo explorar facetas mais profundas da experiência humana, ver o lado mais sombrio das coisas, o lado escuro da lua. Já no espectro sonoro, você tem como contraponto as baterias suaves e econômicas de Nick Mason e os teclados espaciais de Rick Wright. Costurando tudo isso, há David Gilmour, que, com sua genialidade nos vocais e guitarras, consegue consolidar a assinatura sonora definitiva da banda. Gilmour, por sinal, é um mestre na dinâmica e no domínio do tempo ao tocar seus solos, que parecem uma verdadeira história contada melodicamente.
Com a saída de Roger Waters, a banda se transformou em uma cadeira de três pernas: conseguia até parar em pé, mas faltando um elemento importante da alquimia que ganhou o mundo. A parte lírica se diluiu, perdeu a direção. Mas o repertório construído por eles em sua fase clássica continua sendo alvo de interesse crescente.
Não deixa de ser curioso pensar sobre a relevância do legado da banda diante dessa chamada “geração do skip”, com pessoas incapazes de ouvir as músicas até o fim. Atualmente, vivemos uma era em que produtores e músicos aderiram à tendência até de cortar a introdução das canções, no desespero de criar qualquer gancho bombástico capaz de reter a atenção de ouvintes cada vez mais desatentos e inconstantes.
E aí você procura no Spotify os dados da canção “Shine on you Crazy Diamond” (do disco Wish you Were Here, de 1975), e percebe que, apesar de sua longa introdução em fade in de, com minutos e minutos de um som de teclado sutil que promete ser um teste de paciência para qualquer jovem oriundo da Geração Z, a faixa ostenta impressionantes 223 milhões de views.
Tudo isso mostra que, apesar de todas as tendências, o que de fato prende a atenção das pessoas são as boas histórias. A publicidade sabe disso faz tempo, e já transformou essa necessidade humana universal por narrativas em um conceito que tornou-se até infame ao longo do tempo: storytelling. Seja para empurrar um político duvidoso ou uma nova marca de macarrão sem glúten, nada vende melhor do que uma história cativante.
E, dentro do mundo da música, o Pink Floyd tem uma vantagem considerável: diferente de compositores como Bob Dylan, que se ancoram no poder dos versos para narrar, o quarteto progressivo é capaz de oferecer uma experiência completa de imersão: letras e melodias (e não nos esqueçamos da sonoplastia!) à serviço de uma boa história.
E é curioso que, enquanto tantas pessoas que buscam a fama nas artes tentam aplicar um suposto manual de regras do sucesso, artistas como o Pink Floyd rasgaram todo o protocolo existente no mundo pop, e decidiram que iriam fazer tudo do seu próprio jeito. E, mesmo assim, se tornaram um fenômeno.
Apesar dos inúmeros elementos que marcaram sua trajetória, ainda acredito que uma das melhores sínteses para explicar seu triunfo envolve o talento do grupo para contar boas histórias através de suas canções.