Qual o sentido de um trauma?

O que a arte pode nos dizer sobre o sentimento de ter sua vida paralisada.

1.

Um dos poemas mais conhecidos da história da literatura brasileira é No Meio do Caminho, de Carlos Drummond de Andrade. Ao longo de quase todo o poema, nos deparamos com uma repetição em stacatto de um mote tão simples quanto perturbador: tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra. E isso é repetido por mais três ou quatro vezes nos versos seguintes. Muitos consideram que trata-se de um poema aborrecido e quase preguiçoso, mas há de se imaginar o impacto que a obra teve quando foi publicada no início da década de 30, quando boa parte da intelectualidade brasileira se via ainda bastante apegada às regras da poesia clássica.

Existe um motivo para que o poema do Drummond insista no fato de haver uma pedra no meio do caminho. O fato em si poderia parecer irrelevante, não fosse a repetição intermitente. Obviamente, o caráter aberto da obra poética permite que façamos inúmeras interpretações, mas várias leituras desse poema dão a entender que, com o recurso da interdição repetida ad infinitum, o poeta busca representar um sentimento universal: o trauma.

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No livro Força da Lei, o filósofo Jacques Derrida traz um conceito que aprofunda a questão do trauma: a noção de aporia. Do grego, “a” = alfa privativo e “poros” = caminho, passagem. Trata-se, portanto, da impossibilidade de seguir em frente, da ausência de caminhos. A aporia enquanto conceito trata de uma situação aporética, um contexto em que a pessoa se vê diante de fronteiras que podem ser físicas ou emocionais, e que, para ela, simbolizam barreiras que parecem (quase) intransponíveis.

Assim é o trauma para quem o vivencia: uma pedra no caminho. A repetição do poema de Drummond representa o drama do trauma, sua situação aporética: apesar de ocorrer em um momento isolado no tempo, a pessoa parece condenada a vivenciá-lo em seu íntimo, e a reviver esse acontecimento inúmeras vezes dentro de si.

Assim, fica a dúvida: os artistas deveriam apenas buscar representar o trauma enquanto um fato da vida? Ou as obras de arte seriam capazes de fornecer mapas que permitam às pessoas driblar a pedra que interfere em seus caminhos?

2.

A série Vida Após a Morte (disponível na Netflix) tem um título diretamente ligado a seu conteúdo: apresenta relatos e análises de várias pessoas que viveram (ou estudam) as chamadas EQM – Experiências de Quase Morte. O primeiro episódio dessa série documental apresentou uma história que me fez pensar bastante sobre o papel da arte em nossas vidas.

A série inicia com o relato de Mary Neal, uma médica que, em 1999, viajou para o Chile na companhia do marido e alguns amigos. O ponto alto de sua viagem envolvia embarcar em um caiaque e descer por várias quedas de uma cachoeira da região. Apesar de todos ali serem remadores veteranos, o caiaque de uma das moças ficou preso na passagem principal, o que levou Mary a ir parar em uma parte mais intensa da corredeira. Isso a fez cair de uma enorme queda d’água, e, quando a encontraram, ela estava desacordada no meio de vários rochedos, com inúmeras fraturas e lacerações por todo o corpo. Sem muita esperança, seus amigos aplicaram os primeiros socorros, e eles estimam que ela deve ter ficado sem oxigênio no cérebro por mais de 30 minutos.

Nesse período, Mary teria tido visões típicas de muitas pessoas que passaram por traumas parecidos. Ela narra que perdeu a sensação de estar em seu corpo físico, sentindo que seu espírito foi “lançado para o céu”. Nesse momento, ela relata ter entrado em um túnel de luz e se encontrado com “um grupo de criaturas” (talvez por sua profissão de médica, ela hesita em chamá-los de pessoas, seres ou espíritos). Em paralelo, ela também conseguia ver seus amigos esforçando para resgatá-la do acidente. Mary diz que não queria voltar para o próprio corpo, e que até se sentia em paz diante do ocorrido. Entretanto, os seres disseram que não era a sua hora de partir. Nesse momento, seus amigos conseguiram reanima-la, e, após atendimento médico, ela conseguiu não apenas sobreviver, mas até mesmo superar as sequelas físicas, além de não ficar com nenhuma sequela cognitiva – algo que parecia completamente implausível, dado o longo tempo sem oxigenação cerebral.

É uma história incrível. Mas ela não acaba aí.

Na verdade, o que Mary conta a seguir me pareceu ainda mais estarrecedor. (caso queira assistir a série, recomendo que pare de ler o texto aqui mesmo, pois seguirei dando importantes spoilers).

Quando a médica estava em sua experiência de EQM, um dos seres do outro plano relatou que Willie, um de seus filhos, teria uma morte precoce. O garoto tinha apenas nove anos de idade na época do seu acidente no Chile. Naturalmente, diante de uma informação tão grave, Mary perguntou: “Por que Willie? Por que meu filho?”.

E a resposta de um dos seres foi: “a beleza vem de tudo”.

O tempo passou, Mary se recuperou, e seu filho chegou a passar dos dezoito anos. Ela chegou a acreditar que os planos do destino mudaram em relação à Willie. Até que, subitamente, um carro desgovernado surgiu do nada enquanto o rapaz esquiava, invadindo a pista e o atropelando. Ele morreu na hora.

Mesmo depois de passar por experiências tão inusitadas sobre o limiar da existência física, Mary vivenciou um luto pesado envolvendo o acontecimento com seu filho. Apesar disso, ela confessa que a EQM mudou sua visão sobre a morte. Para ela, não se trata de um ponto final, mas apenas da perda material de alguém, cuja consciência continua a existir após o corpo perecer.

Sei que histórias como essa mexem com as crenças de muita gente, e aqueles que se pautam por certa dose de ceticismo poderão atribuir os relatos de Mary e de outras pessoas como sendo uma espécie de sonho gerado pela situação de quase-morte. Agnósticos talvez hesitem em refutar, mas também não queiram comprar todas as partes da história, considerando que se parece demais com algum tipo de “fanfic mística” ou algo assim. No meu cotidiano de trabalho, convivo com pessoas que pensam assim, e longe de mim querer questionar suas escolhas de fé ou de visão de mundo. Mas o que me fez querer mencionar essa história foi a frase “a beleza vem de tudo”, dita pelos seres que Mary viu no outro mundo. As implicações dessa premissa podem interessar a todos, independente das suas crenças pessoais.

Quando acabei de assistir a esse episódio da série, não conseguia deixar de pensar nessa frase. Ela é, basicamente, uma premissa poética. Não apenas parece um verso poético em si mesmo, em sua forma que remete aos haikais ou koans orientais, sugerindo mais do que explicando. Mas a própria frase (ou verso) traz como possível significado uma interpretação do que seria a própria essência da atividade poética. Eu consigo imaginar a cena de um professor de literatura em Yale ou Cambridge ouvindo seus impacientes alunos do primeiro período “professor, por que escrever poesia?”, e lhes respondendo “a beleza vem de tudo”.

Sobre céticos e crentes, vale mencionar um estudo do neurocientista Andrew Newberg que afirma que nada bombeia mais sangue (fluxo sanguíneo) para o lobo pré-frontal cérebro do que o ato de orar em agradecimento pela vida. A recomendação também pode ser otimizada pelos ateus, que, se não acreditarem em um Deus transcendente, podem repetir para si mesmos algumas frases de gratidão pelas circunstâncias fortuitas de sua vida, e assim se beneficiarão desse fluxo sanguíneo a seu modo.

O fato é que essa descoberta científica da oração de gratidão mostra que um dos maiores benefícios fisiológicos (ou espirituais) que podemos fazer por nós mesmos envolve o reconhecimento da beleza da vida. Pois o ato de orar e agradecer pela vida significa, basicamente, celebrar a beleza de tudo.

Nesse sentido, a literatura e as artes em geral trazem conteúdos eficazes como possibilidade de superação de traumas. Quando uma pessoa passa por acontecimentos difíceis na vida, será bem improvável que ela possa perceber qualquer vestígio de beleza em meio à dor. Isso ocorre porque o trauma impede que haja um distanciamento saudável do acontecimento.

Para conseguir esse distanciamento, a pessoa que faz terapia ou que produz arte estará, basicamente, organizando suas emoções e pensamentos na dimensão da linguagem. Elaborando sua dor em uma história inteligível. A maior pedra no caminho das pessoas é a impossibilidade de narrar. Em seu ensaio Sobre o Conceito de História, Walter Benjamin conta a respeito de soldados que voltavam do front de batalha tão afetados pela experiência da guerra que sequer conseguiam falar sobre o que lá vivenciaram.

No fim das contas, a pessoa é capaz de ressignificar os acontecimentos de sua vida, desde que ela seja capaz de, primeiramente, traduzir a memória desses fatos através de seus instrumentos de linguagem. Seja a linguagem verbal usada na literatura, no jornalismo, nos roteiros de cinema e teatro… ou seja a linguagem simbólica da pintura, da música, da dança e de tantas outras artes.

A linguagem permite organizar um mosaico de imagens que podem representar os altos e baixos vividos pela pessoa. Nesse sentido, é importante destacar que as melhores histórias nunca são lineares ou amenas. O potencial transformador de uma história está na constatação da superação de um trauma. É quando a pedra se transforma em flor. Ou o chumbo em ouro: a alquimia do narrar. Em vez de obstruir o caminho, a superação embeleza o local por onde você passa. E essa beleza não é apenas sua. Pois quem supera um trauma cria beleza no mundo. O exemplo dado por uma única pessoa pode motivar milhares.

3.

Anos após escrever No meio do caminho, Drummond escreveu o poema Consolo na praia, onde afirma que, mesmo com o caminho interditado, outros atalhos e rotas podem ser recriadas. Encerro meu ensaio com os versos do poeta mineiro:

Vamos, não chores.

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis carro, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho.

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