Reflexões por vezes absurdas para um problema real
As eleições de 2024 deixaram muita gente da esquerda com a impressão de que as estratégias atuais do campo progressista não estão se convertendo em ganhos eleitorais. Essa é uma meia verdade: o maior partido de esquerda do Brasil, PT, elegeu 40% mais prefeitos em 2024 na comparação com 2020 – e desde 2004 o partido dos trabalhadores não tinha um resultado tão expressivo na disputa das prefeituras brasileiras.
Ainda assim, muita gente de esquerda anda sem esperança com o futuro, acreditando que as coisas podem ficar bem complicadas nos próximos anos. Em entrevista à BBC, o pesquisador italiano Paolo Demuru afirmou que a direita radical foi responsável por sequestrar a pauta do trabalho e do desejo, e, através do uso compulsivo de fake News (que Demuru chama de “fantasias conspiratórias”), reabilitou para tantas pessoas algo que parece tremendamente escasso no mundo contemporâneo: a dimensão do sonho, da utopia.
Fato é que existem inúmeras causas que ajudam a explicar o crescimento da extrema direita no país. Mas um aspecto em especial me chama a atenção, servindo como motivação para esse ensaio: me refiro aos núcleos de sociabilidade e coletividade que atuam sobretudo através das igrejas evangélicas.
Enquanto acadêmicos de esquerda e direita se digladiam com palavras de ordem nas redes sociais e palanques midiáticos, o brasileiro pobre tem questões mais palpáveis para lidar no seu dia a dia – e os evangélicos conseguiram oferecer um discurso que, se não resolve, pelo menos atenua várias das demandas das classes populares. Na tentativa de correr atrás do prejuízo, o Presidente Lula tem sido mais ousado na proposição de políticas e projetos de lei com acenos generosos à bancada evangélica.
Em uma análise breve (porém muito certeira), o já citado Paolo Demuru comenta sobre como o surgimento da internet e das redes sociais foi gradativamente confinando as pessoas em rotinas mais solitárias, e teria sido a extrema direita que percebeu a necessidade de propor alternativas de experiências de coletividade. Nesse sentido, para além das igrejas, o que diríamos, sei lá, daqueles acampamentos dos golpistas na frente dos quartéis em 2023? Seria aquele carnaval conservador apocalíptico apenas mero pretexto para encontrar pessoas com opiniões parecidas?
Diante disso, pensei em escrever sobre alternativas de sociabilidade para o campo da esquerda; contudo, o texto que apresento aqui não se propõe de modo algum a ser sério, analítico ou mesmo acadêmico. Vou apresentar, de maneira lúdica e livre, sem nenhum tipo de metodologia ou esquema mais complexo, três alternativas para que a esquerda construa núcleos de sociabilidade que sejam acolhedores à classe trabalhadora e ao povo pobre do Brasil. São alternativas que tentam levar em conta que, dentro do campo progressista, existem aquelas pessoas que se identificam com religiões institucionalizadas e expressões de fé, ao lado das que não acreditam em nada disso.
De alguma forma, penso que, ainda que esse ensaio esteja muito longe de trazer reflexões exigentes e profundas sobre a crise das esquerdas, talvez paradoxalmente exista algo de pertinente e até de propositivo nessas propostas despretensiosas. Então, aí vai:
Alternativa 1: igrejas evangélicas de esquerda
Aqui, não há nada de novo para propor, visto que existem muitas igrejas de orientação mais progressista, como a Igreja Batista do Caminho – de onde saiu o Pastor Henrique Vieira (PSOL), deputado federal pelo Rio de Janeiro. Na verdade, desde a década de 80, existe no Brasil o Movimento Evangélico Progressista (MEP), cujas origens remetem ao Pacto de Lausanne, assinado em 1974 por líderes evangélicos de todo o mundo, e que viria a inspirar no Brasil a Teologia da Missão Integral, doutrina que considera a evangelização como algo inseparável da responsabilidade social.
Portanto, quem pensa que só existem em nossas terras igrejas evangélicas de cunho conservador, pautadas pela Teologia da Prosperidade ou pela Teologia do Domínio, é preciso saber que existem alternativas de profissão de fé e de sociabilidade cristã que estão calcadas em ideias e práticas de esquerda. Nesse sentido, a única proposição possível seria a de ampliar e apresentar essas alternativas em um número maior de localidades.
Alternativa 2: igrejas para quem não gosta de igreja
Não são poucas as pessoas que pensam que a tradição judaico-cristã representa o grande mal da humanidade. Ainda que essa tradição não seja apenas eclesiástica (pense na escolástica, que praticamente cria as universidades como as conhecemos), muita gente acredita que o clero e seus seguidores – sejam católicos, protestantes, pentecostais, e outras denominações – são os maiores responsáveis por tudo de ruim na história.
E se eu disser que não apenas existe um tipo de igreja que essas pessoas indignadas podem fundar, mas que esse tipo de organização pode ser uma baita alternativa para o campo progressista? Estou falando das igrejas satânicas.
Nos Estados Unidos, uma das maiores pedras no sapato de grupos conservadores que misturam política e religião tem sido o Templo Satânico (Satanic Temple, ou TST), fundado em 2013 na emblemática cidade de Salem, Massachusetts. As autoridades do Templo Satânico argumentam que, se organizações cristãs podem exibir símbolos religiosos ou influenciar políticas, o mesmo direito deve ser garantido a todas as religiões – incluindo o satanismo.
Esse argumento tem sido usado para, por exemplo, exigir espaço para estátuas satânicas em prédios públicos onde estão presentes monumentos cristãos. Muitas vezes, os satanistas não conseguem seus objetivos, mas sua iniciativa faz com que os governos de cidades e estados frequentemente repensem suas políticas, visando evitar confrontos maiores. Ou seja, para impedir a construção de uma estátua do Diabo, os políticos arquivam também o projeto para fazer a estátua de Deus.
O que igrejas como o Templo Satânico fazem é usar o argumento das igrejas conservadoras contra elas mesmas. Bancando (literalmente) os “advogados do diabo”, eles jogam na esfera pública uma questão importante: se é para misturar política com religião, a lei não deveria valer para todas as organizações religiosas – mesmo aquelas que veneram Baphomet?
Muitas pessoas acham que iniciativas dessa natureza são apenas uma brincadeira que usa do discurso satanista para “trollar” o sistema. A revista Vox chegou a dizer que o Templo Satânico teria contornos de “arte performática” em suas iniciativas. Mas, se olhar mais profundamente, você verá que essa organização chega a ser mais engajada que muitos grupos ditos de esquerda.
Na pauta do aborto, por exemplo, o Templo Satânico tem se mostrado como um dos mais ardorosos combatentes, entrando com ações judiciais contra diversos estados proibicionistas, e chegando até a fundar clínicas de aborto com aconselhamento gratuito remoto e realização de aborto medicamentoso.
Alternativa 3: igrejas para ateus
Vamos supor que você seja de esquerda, mas que todo o vestígio de fé que poderia existir na sua “alma” materialista foi direcionado não para Deus ou para Satanás, mas sim para Karl Marx. Sim, você até poderia apoiar algum tipo de iniciativa de sociabilidade progressista, mas não suportaria fingir que acredita em Lúcifer para endossar a criação de uma igreja satanista. Afinal, você é um ateu, e não consegue defender nem o céu e nem o inferno.
Nesse caso, vou propor aqui a criação do que pode ser pensada como uma “igreja do absurdo”, ou uma igreja lúdica (que nem precisaria ser chamada de igreja, mas vamos seguir com a linha argumentativa do texto), uma iniciativa mais poética e subversiva do que doutrinária, mero pretexto criativo para reunir pessoas e pensar em atividades que agreguem um potencial de brincadeira e descontração. Apresento-lhes a proposta de uma igreja patafísica.
A patafísica foi criada pelo escritor simbolista francês Alfred Jarry no fim do século XIX, e foi definida por ele como sendo “a ciência das soluções imaginárias”. Essa iniciativa inusitada usa a lógica do absurdo e do irracional para explorar os limites do conhecimento e da realidade, e tornou-se, ao longo dos anos, uma influência cultural e filosófica para diversos pensadores e artistas.
Apesar da patafísica ser considerada uma filosofia da ciência, penso que ela poderia facilmente inspirar uma igreja do absurdo. Nesse caso, qualquer lugar poderia se tornar um templo, e, caso você decida fundar uma célula dessa igreja, bastaria apenas fazer um altar e colocar a imagem de Alfred Jarry como uma referência de culto. Ou, caso não queira incentivar a idolatria nem de brincadeira, poderia substituir o retrato do criador da patafísica pelo do personagem Ubu Rei (protagonista da mais famosa peça teatral de Jarry). Em último caso, você pode trocar tudo isso por um altar que tenha apenas uma bicicleta (no calendário patafísico, os meses de fevereiro e março são substituídos pela alcunha pedal de bicicleta).
Em uma igreja dessas, qualquer coisa pode ser motivo para gerar encontros e rituais. Você pode combinar com os amigos de ir até a praça plantar uma árvore – mas, sendo um rito patafísico, isso poderia ser feito de um modo mais meticuloso, com as pessoas criando danças temáticas ou escrevendo poemas que só contenham palavras com a letra “A”, por exemplo.
Os “fieis” dessa igreja podem combinar passeios que seriam chamados de “caminhadas peripatéticas”, onde são cumpridos rituais como contar quantas casas e prédios amarelos você encontra pelo caminho, até que, no fim do trajeto, o número total contabilizado pode inspirar uma aposta na loteria ou um número de biscoitos para cozinhar. Aqui, o limite para as tarefas e rituais é determinado pela imaginação de cada um. Existem motivos quase infinitos para inspirar o encontro dos seguidores patafísicos.
Eu quis concluir esse ensaio trazendo a absurda igreja da patafísica por um motivo simples: os motivos para se reunir pessoas podem ser bem mais leves e despretensiosos do que pensamos.
A ideia que se tem de uma sociabilidade de esquerda varia entre extremos: pode ser uma estrutura de sindicato, ou um grupo de estudos, ou ainda um botequim dos mais dionisíacos. Nada disso é verdade, mas não deixa de ser verossímil. Mas o pior é aquela típica pessoa de esquerda que, crendo-se militante, acha que sociabilizar significa dizer “sente-se aí, seu néscio, que eu vou te explicar o primeiro capítulo de O Capital em detalhes!”.
No fundo, se as pessoas precisam de um pretexto para estarem juntas, é preciso que o motivo desse encontro consista mais em unir do que separar. É importante aqui criar ecossistemas baseados em respeito mútuo, diálogo e acolhimento das diferenças. Esse último aspecto, sobretudo, tem sido apontado por muitos críticos da esquerda como um dos principais entraves do discurso progressista. Através do identitarismo, nichos e grupos específicos muitas vezes parecem mais dispostos a fomentar brigas dentro do campo da esquerda do que circular em um ambiente comum, onde todos podem trocar ideias e experiências sem culpa, de maneira horizontal e fraterna.
Se a proposta da igreja satânica parece tão ou mais inverossímil do que a igreja da patafísica, meu intuito aqui foi provocar os leitores para sonharmos juntos com novos espaços em que a responsabilidade social possa representar um novo modelo de comunitarismo progressista. Sei que não basta apenas algo dessa natureza para sanar a falta de consciência de classe no Brasil contemporâneo, mas fico imaginando se a experiência de espaços comuns não significaria uma semente de mudança positiva para a esquerda nacional.