Passeando e pensando a partir das ruas de Macapá
Tenha isso em mente quando sair para caminhar em Macapá: vá muito cedo ou vá relativamente tarde. Caso contrário, a sensação será a de ter o sol preso na etiqueta da sua camisa, como se o astro-rei te seguisse muito de perto. Tenho dificuldade para abrir mão das manhãs em prol de algo físico, já que, nas primeiras horas do dia, rendo bastante nas tarefas de trabalho ou na escrita. As caminhadas acabam ficando quase sempre para depois das 18h.
Eis que saio pelas avenidas amplas do meu bairro (para um mineiro do interior, espanta como algumas ruas em Macapá podem ser tão largas), desfrutando da brisa sempre forte e bem vinda, típica da cidade. Sempre que avisto tal combinação de vermelho e verde no pôr do sol, penso que é Deus implorando para que um novo Turner ou Monet surja nas florestas amazônicas e imortalize esse espetáculo.
Enquanto atravesso um cruzamento de movimento até modesto em pleno horário de pico, penso que o fim de semana está se aproximando, e preciso fazer o texto da newsletter. “Não seria engraçado se o texto fosse uma crônica sobre a própria newsletter?”, penso. Um artifício literário daqueles. Calma lá, Rafael, pega leve. Ainda não existe categoria no Jabuti para quem escreve nesse suporte. Considere que seus leitores trabalharam por toda a semana, e a última coisa da qual precisam nesse sábado é de alguém que pavoneia-se com a própria literatura.
Passo pelo lava-jato “Pulo do Gato”, onde sempre deixo meu carro para limpar vez ou outra. Hoje o dono (conhecido como “Gato”, claro) não está lá; mas vejo um gato de verdade me encarando (de acordo com o dono, é o mascote da empresa). O passeio alto me leva até o muro da Escola Municipal Rondônia, identificável pelas árvores frondosas cujas copas invadem a calçada com a mais generosa das sombras. É uma pena que não defendam um plano diretor em Macapá que permita corredores arbóreos como esse. Os antigos dizem que a capital era bem mais fresca na época em que mais árvores estavam de pé. E as pessoas no mundo inteiro achando que ter um novo Iphone é sinônimo de “evolução”…
Volto a pensar na newsletter quando sou obrigado a esperar o intenso fluxo dos carros na Avenida Jovino Dinoá. Tem sido um trabalho árduo escrever um texto por semana. As vezes, recorro à safadeza, e pego textos escritos há uns meses para dar uma “polida” neles e publicar. Claro que, não raro, essa “polida” dá tanto trabalho quanto escrever um texto novo. E tem um problema. Em termos de continuidade, essa estratégia impede que eu crie uma narrativa mais ampla entre os textos – trazendo conteúdos que dialoguem com o que publiquei na semana anterior, por exemplo. Mas tudo bem, afinal, a Netflix faz isso melhor do que eu.
Passo pela casa da vizinha dos periquitos. Eles “falam” tão alto que um desavisado pode chamar a polícia achando que é briga. A senhorinha que toma conta deles está sempre sentada na cadeira de plástico com olhar sorridente, enquanto a dupla de penas verdes desfila seu escândalo habitual. Atento ao colóquio dos bichinhos, quase pereço diante de um ciclista apressado e pouco hábil com seu veículo, mas consigo desviar a tempo.
Na verdade, a experiência de escrever semanalmente em uma newsletter tem sido nova para mim. Até por não ser jornalista de formação, nunca lidei com a incumbência de produzir conteúdo regularmente. É legal conseguir manter essa regularidade, mas devo confessar que não fui capaz de ajustar a temática geral das newsletters. Dizem que as mais bem sucedidas são dedicadas à um nicho específico. E não as que publicam um texto sobre o Pink Floyd em uma semana e sobre o Leonardo di Caprio na outra.
Enquanto faço o nome-do-pai na frente da Paróquia Jesus de Nazaré, fico pensando se não seria melhor escrever crônicas semanais em vez de ensaios. “Por que raios (sim, raios, e não diabos, estou na frente de uma igreja!) achei que escrever textos reflexivos e ensaísticos no meu tempo livre da universidade seria uma boa ideia?”, pensei. A verdade é que, em meus projetos de escrita, eu sempre ajo como os personagens dos faroestes de Sérgio Leone: atiro primeiro e penso depois.
Na mais pura covardia e cara de pau, considero então a hipótese de escrever um ensaio disfarçado de crônica. Logo descarto a ideia, parece uma falta de respeito. Depois, volto a considerar a possibilidade. Os bons leitores gostam de ser conduzidos a lugares insólitos. Isso é diferente de enganá-los, como fazem alguns autores negacionistas. A quebra de expectativas só é ruim quando a agência de turismo trocou a sua passagem com destino ao Caribe e te enviou para a Patagônia, achando que você ia preferir se refrescar no sul dos Andes. Já na literatura, a subversão pode ser uma coisa boa.
Quando passo em frente ao Seminário São José de Macapá, ouço ao longe a conversa de uma senhora com seu bebê de colo e as amigas (parentes?), todas soando como se falassem em francês ou até mesmo em créole (língua materna de muitas pessoas da Guiana Francesa, região vizinha ao Amapá). Não consigo entender muita coisa. Acho graça do fato de que estou naquele exato momento refletindo sobre o ato de uma pessoa se fazer entender – por escrito ou não.
Parece uma coisa mesquinha ou corporativa demais pensar que um projeto de newsletter precisa ampliar seu público de leitores para ser uma experiência bem sucedida. Por outro lado, penso que todo artista e autor precisa buscar o aperfeiçoamento constante de seu ofício, e isso não diz respeito apenas a escrita em si, mas também aos meios de fazer circular o que produz.
A palavra-chave que estou procurando aqui é essa: vocação. Taí um conceito fora de moda nesse mundo cético e neoliberal, onde tanta gente está procurando formas de ganhar dinheiro, não importa para que finalidade: sobrevivência ou ostentação. Quase todo mundo acha que possui menos grana do que devia, e isso leva a priorizar o vil metal em detrimento da vida em si. Espertos são os que entenderam essa armadilha e encontraram rotas de fuga.
Em outros tempos, já me senti meio deslocado ao sustentar a crença na vocação, ao defender que você pode ser mais pleno na vida quando exercita o seu dom e o oferece para a comunidade. Dito assim, parece algo cafona, bicho-grilo, e até messiânico. Mas é uma ideia que me move, e pela qual não estou disposto a me desculpar. Você pode acreditar na vocação mesmo que não seja a partir de algum tipo de dogma ou discurso religioso. Talvez seja apenas uma intuição que assola sua mente em algumas horas do dia, e depois se esvai quando você lembra das contas a pagar. Não importa de onde venha a ideia: ela só precisa fazer sentido.
Enquanto caminho pela borda da ciclovia da Avenida Hamilton Silva, na contramão do fluxo dos carros, penso que talvez o formato da newsletter seja mais adequado para crônicas em vez de ensaios. Ainda bem que não tenho patrões forçando minha fidelidade a uma linha editorial qualquer. Ao modo dos artistas psicodélicos dos anos 1960 ou dos alquimistas do período helenístico, posso me dar ao luxo de experimentar com o que faço. Afinal, a atividade de escrita provavelmente é mais segura do que, sei lá, produzir fraldas ou airbags (“hah! Diga isso para Jean-Paul Marat, que escrevia para o jornal L’Ami du peuple – O Amigo do Povo –, publicação política que insuflou os parisienses a seguir adiante com a Revolução Francesa”, diz uma voz na minha cabeça).
Enfim, mesmo sem conclusões muito coerentes, viro na Avenida Padre Manoel da Nóbrega e traço a rota de volta para casa, feliz por ter um esboço de tema para brincar.